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Ciclo de Estudos Medievais : ESPIRITUALIDADE FEMININA E LIDERANÇA RELIGIOSA: OS RELATOS DOS DEVOTOS

  • Foto do escritor: Armando Ensino de Idiomas
    Armando Ensino de Idiomas
  • 2 de jul. de 2016
  • 14 min de leitura

ESPIRITUALIDADE FEMININA E LIDERANÇA RELIGIOSA: OS RELATOS DOS DEVOTOS DE UMA SANTA MILANESA DO FINAL DO SÉCULO XIII

Neste sentido, para este ensaio, buscamos apresentar considerações iniciais da pesquisa, a partir da análise do processo inquisitorial contra os devotos e as devotas de santa Guglielma, produzido em 1300, em Milão, no qual foram registrados os depoimentos de pessoas consideradas suspeitas de crenças e práticas heréticas envolvidas no culto à referida santa, estabelecido em torno à abadia cisterciense de Milão e à casa das religiosas humiliatas de Biassono. Assim, buscaremos apresentar uma breve discussão historiográfica acerca das reflexões sobre gênero e espiritualidade, levando em consideração os relatos de alguns dos devotos envolvidos no processo. Será priorizada uma abordagem que abarque as questões relativas à crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo e à intenção do grupo de ter em uma das devotas, a humuliata Maifreda da Pirovano, como a figura de liderança que ficaria a frente da hierarquia de uma nova Igreja, que se organizaria após a esperada ressurreição de Guglielma. Ao nos defrontarmos com a análise dos documentos referentes à santidade tida como marcadamente feminina, observamos que seria de grande importância buscar um aporte teórico que privilegiasse a abordagem dos 106 significados do feminino como representações que partem de conflitos ligados às relações de poder envolvidas na construção dos ideais de santidade e dos saberes referentes à constituição de discursos1 relativos à experiência religiosa, consideradas no contexto como ortodoxas ou heterodoxas. Encontramos então campo fértil para nossa análise na área dos Estudos de Gênero, que permite uma aproximação à percepção de múltiplas visões do feminino, deslocando a questão para o âmbito dos discursos que permeiam o cultural, o social e o político. Essa percepção é balizada pela compreensão de que o gênero está presente em todos os aspectos da experiência humana e de que os saberes acerca da diferença sexual são delimitados por mecanismos de produção que abarcam todas as relações existentes entre os agentes e as instituições de uma determinada sociedade. A noção de gênero como o saber acerca da diferença sexual é proposta por Joan Scott,2 autora que considera a importância de se incorporar o gênero ao discurso historiográfico por ser uma categoria que permite analisar os elementos mais fundamentais de toda a organização de uma sociedade. Assim, o uso da categoria gênero em nossa análise tem por principal objetivo permitir a compreensão acerca de como as diretrizes de gênero interferem na construção dos ideais de santidade e como esta construção se relaciona com as instituições ligadas ao papado, na Península Itálica do século XIII. Além disso, nos interessa perceber quais são as formas pelas quais os processos interrogatórios constroem discursos genderizados sobre as figuras femininas que receberam diferentes tipos de culto. O primeiro estudo realizado a partir das atas do Processo inquisitorial contra os devotos e as devotas de santa Guglielma foi obra do milanês Giovanni Pietro Puricelli, no século XVII.3 Foi este autor que, 1 Utilizamos o conceito, elaborado por Andréia Frazão, de que discurso é “uma construção humana coerente, coletiva, dinâmica, e organizada sobre uma determinada temática” além de não se limitarem “ao universo das ideias” e não antecederem “a organização social [...], já que é inseparável dela” (Cfr. SILVA, A. C. L. F. da. Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002. p. 195). 2 SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil para os estudos históricos? Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, 1990. 3 A obra, intitulada De guillelma Bohema vulgo Guglielmina não foi publicada e encontra-se preservada no manuscrito original constante da Biblioteca Ambrosiana de Milão desde 1676, sob a referência C.1 inf. O conhecimento desta obra deu-se por meio de MURARO, Luisa. Guillerma y Maifreda. Historia de una herejía feminista. Barcelona: Ediciones Omega, 1997. 107 tendo tido contato primeiramente com as lendas4 surgidas com o fim do movimento guglielmita e, posteriormente, com o processo, lançou as bases para um estudo histórico a respeito dos eventos ocorridos em torno à Guglielma. A maior ênfase dada pela obra recai sobre as origens da heresia no que concerne à associação entre o feminino e o Espírito Santo, que segundo Puircelli remontaria às origens do cristianismo.5 Em sua reconstrução da doutrina seguida pelos devotos de Guglielma, estritamente relacionada ao seu culto, Felice Tocco6 é o primeiro a tratar da questão da consubstancialidade física entre Guglielma e Cristo, relacionando-a à crença de que ela seria a encarnação humana feminina do Espírito Santo. Ele argumenta que Puricelli errou ao buscar as origens da heresia em movimentos anteriores ao século XIII, como a relação feita entre aquela e as profecias de Joaquim de 4 Após a dispersão do grupo dos guglielmitas causada pela repressão inquisitorial, se formou acerca deles uma lenda, preservada pelos escritos de Bernadino Corio, elaborados em 1503, segundo a qual Guglielma e Andrea Saramita eram amantes que praticavam rituais envolvendo orgias sexuais. MURARO, Luisa. Guillerma y Maifreda... Op. Cit., p. 91-101. 5 O intervalo proposto por essa revisão bibliográfica, entre a obra de Puricelli e a seguinte, do historiador Felice Tocco, explica-se pelo fato de, apesar de termos conhecimento de obras produzidas neste ínterim a respeito de Guglielma e seus devotos, não conseguimos acesso às mesmas. As referências são as seguintes: MURATORI, Ludovico. Antiquitates Italicae Medii Aevi Sive Dissertationes. Milano: Michaelis Bellotti, 1741. T. 5, p. 90-93; GIULINI, Giorgio. Memorie storiche della cittá e campagna di Milano. Milano: s.n., 1760. V. 4, p. 670-673; TIRABOSCHI, Girolamo. Vetera Humiliatorum Monumenta. Milano: J. Galeatius, 1766. V. 1, p. 354-363; TAMBURINI, Pietro. Storia generale dell’Inquisizione. Milano: Fratelli Borroni, 1818. V. 1, p. 587- 592 e V. 2, p. 5-72; PALACKY, Franz. Literarische Reise nach Italien im Jahre 1837. Praga: Kronberger’s Witwe und Weber, 1838; CAFFI, Michele. Dell’Abbazia di Chiaravalle in Lombardia. Iscrizioni e Monumenti. Aggiuntavi la storica dell’eretica Guglielmina Boema. Milano: Giacomo Gnocchi, 1842; FABI, Massimo. Corografia d’Italia. Milano: Pagnoni, 1854. V. 1, p. 523-524; OGNIBEN, Andrea. I Guglielmiti del secolo XIII. Perugia: s.n., 1867; LEA, Henry. A History of the Inquisition of the Middle Ages. New York: Harper & brothers, 1901. V. 3, p. 90-128. 6 TOCCO, Felice. Guglielma Boema e i Guglielmiti. Atti della Real Academia dei Lincei, Roma, v. 8, n. 5, p. 3-32, 1900. 108 Fiore7 a respeito do advento da chamada Era do Espírito Santo.8 Assim, Tocco considera que partiu de Guglielma o sistema de crenças que caracterizava o grupo de devotos e retira de Andrea Saramita e de Maifreda a culpa pela criação da heresia, vendo-os apenas como continuadores de uma seita. Tal acepção volta a ser invertida pela obra de Gerolamo Biscaro, que argumenta que o movimento guglielmita não inova muito se comparado com outras heresias da época e tem por única característica distintiva ter materializado a profecia joaquimita na figura de Guglielma, sem que ela tenha realmente tido participação na formulação das crenças do grupo.9 O autor, ao contrário de Tocco, concentra-se exclusivamente na leitura do processo e na comparação com documentos de arquivo relativos à inquisição, nos quais, sabe-se que quase nada dos ensinamentos da própria Guglielma foram preservados. Uma inovação significativa em relação ao estudo da santidade de Guglielma no contexto da heresia aparece mais tarde com Stephen Wessley, que traz o tema do Imitatio Christi para o seio dos estudos sobre os guglielmitas.10 No entanto, não desenvolve a questão e não faz nenhuma associação entre esta prática e o feminino. Por outro lado, traça como principal ponto de surgimento da heresia uma “reação ao 7 O movimento profético lançado por Joaquim de Fiore, um abade e estudioso da Bíblia do século XII, aplicou a doutrina da Trindade para o curso da história. Seus ensinamentos afirmavam que houve uma era do Deus Pai, correspondente ao Velho Testamento, seguida pela era do Deus Filho, correspondente ao Novo Testamento e à preponderância da Igreja. Tal proposição não era original, pois já havia sido elaborada por outros eruditos ligados à Igreja na época. No entanto, ele foi além, afirmando que existiria uma terceira era, a era do Espírito Santo, relativa a Terceira Pessoa da Trindade, uma era de paz, liberdade, amor e esclarecimento universal que seria conduzida por membros de novas ordens religiosas não corrompidas pelo poder e pela riqueza. (Cfr. ASHE, Geoffrey. Encyclopedia of Profecy. California: ABC-CLIO, 2001. p. 96). Segundo os cálculos propostos por Joaquim de Fiore, o ano do início do fim da Era do Deus Filho, quando se daria a concretização da Era do Espírito Santo, seria 1260, quando Guglielma chegou à Milão. 8 Ibidem, p. 3-4. 9 BISCARO, Gerolamo. Guglielma la Boema e i Guglielmite. Achivio Storico Lombardo, Milano, n. 6, p. 1-67, 1930, p. 24. 10 WESSLEY, Stephen. The Thirteenth Century Guglielmites: Salvation through Women. In: BAKER, Derek (Ed.). Medieval Women. Oxford: B. Blackwell for the Ecclesiastical History Society, 1978. p. 289-303. 109 sacerdócio exclusivamente masculino”, que poderia “oferecer às mulheres entusiastas a justificação para exercer as funções sacerdotais”.11 Assim, o autor confere à Maifreda da Pirovano um lugar central no desenvolvimento da heresia, sem dar muita relevância ao culto a Guglielma, mesmo sendo a posição de Maifreda estreitamente relacionada a tal culto, já que esta alegava experiências extáticas e visionárias relacionadas com a imagem da santa já falecida. Em 1984, a historiadora Caroline W. Bynun, em uma de suas vastas obras acerca da espiritualidade feminina na Idade Média, menciona o caso de Guglielma, quando afirma que, em determinadas situa- ções, homens viam em mulheres místicas e proféticas uma via para a renovação da Igreja. Segundo a autora, essa questão teria sido demasiadamente enfatizada pelos inquisidores ao longo do Processo e se tratava de uma criação engendrada pelos membros homens do grupo de devotos.12 Ainda para Bynum, o ideal da imitação de Cristo, tão presente nas formas de espiritualidade do século XIII, trazia implicações diretas para a forma como vinham se desenvolvendo as experiências religiosas associadas a mulheres.13 A associação entre o sofrimento de Cristo, visto como analogicamente feminino, já que corporal, acaba por conferir às mulheres uma autoridade e lugar de fala que era geralmente ocupado apenas por homens.14 No caso de Gugleilma, não podemos perceber, como acontecia com outras santas do período, como veremos no caso de Clara de Assis, uma tendência à vida ascética em demasia. No entanto, acreditamos ser possível aproximar as argumentações de Bynum a respeito do caráter feminino da experiência humana de Cristo 11 Ibidem, p. 358-359. 12 BYNUM, Caroline W. Women Mystics and Eucharistic Devotion in the Thirteenth Century. In: ___. Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. New York: Zone Books, p. 138. 13 Ibidem, p. 139. 14 A relação entre espiritualidade feminina e o controle do corpo é melhor explicada pela autora na obra BYNUM, Caroline W. Holy Feast and Holy Fast: the religious significance of food to medieval women. Berkely: University of Carolina Press, 1987. Neste livro, Bynum argumenta que o jejum e sofrimento se tornam uma forma de alcançar a divindade e que o sofrimento aqui deixa de ser visto como uma forma de misoginia internalizada, que previa a punição do corpo luxurioso, e passa a ser vista em termos de uma relação com a experiência humana de Cristo, esta vista como metaforicamente feminina. 110 com a questão da consubstanciação presente nos trabalhos a respeito de Guglielma desde Puricelli. Logo no ano seguinte a publicação deste estudo de Bynum, foram lançadas duas obras dedicadas à história dos guglielmitas pelas autoras italianas Luisa Muraro15 e Patrizia Costa,16 ambas preocupadas em resgatar os relatos do processo inquisitorial e dar-lhes uma roupagem mais enfaticamente relacionada a teorias feministas. A obra de Muraro se propõe a uma releitura acerca de tudo que já havia sido produzido sobre Guglielma, trazendo, inclusive uma proposta de tradução de partes do processo. O ponto principal da heresia dos guglielmitas estava nas representações femininas da santidade, no fato de Guglielma ser Deus e Maifreda sua vigária na terra, o que acabaria com uma hierarquia entre os sexos, pelo poder de uma figura feminina como topo da elaboração teológica e da organização clerical. A liderança religiosa de Maifreda e o pensamento teológico de Andrea constituem para Muraro dois polos diferentes dentro da formulação teológica do grupo. Para Andrea, o importante era o estabelecimento de uma nova interpretação teológica, que incluía novas escrituras e uma nova hierarquia eclesiástica, enquanto Maifreda focava sua interpretação da divindade de Gugleilma na manutenção da presença desta através dos sacramentos.17 Além disso, para a autora, os homens e mulheres do grupo viam a santidade/divindade de Guglielma de maneiras diferentes. Para os homens estaria mais presente a intenção de criar uma Igreja encabe- çada por mulheres em substituição àquela que eles conheciam. Para as mulheres, a importância estaria nos poderes milagrosos de sua santa e na memória de sua posição como líder carismática do grupo quando ainda em vida. Já para Patrizia Costa, a questão central estava mesmo numa insatisfação, própria do período, com relação à hierarquia eclesiástica. A autora trabalha com a ênfase na necessidade de uma substituição da 15 MURARO, Luisa. Guillerma y Maifreda. Historia de una herejía feminista. Trad. Blanca Garí. Barcelona: Ediciones Omega, 1997. 16 COSTA, Patrizia. Guglielma la Boema, l’eritica di Chiaravalle. Uno scorcio di vita religiosa milanese nel secolo XIII. Milano: Nuove Edizioni Duomo, 1985. 17 MURARO, Luisa. Guillerma y Maifreda... Op. Cit., p. 29. 111 Igreja masculina por uma feminina, já que esta seria a via possível de uma renovação da hierarquia eclesiástica. Alguns outros elementos são discutidos pela autora para afirmar que a heresia se constituiu pelo grupo de devotos, como um todo, após a morte de Guglielma e sem uma maior preeminência desta na formulação teológica, tal qual acabou por sofrer com a repressão inquisitorial. A autora chama a atenção para o fato de que embora em vida Guglielma se vestisse de maneira muito simples, as roupas que os devotos haviam preparado para seu uso quando de sua ressurreição eram luxuosamente elaboradas, assim como as que Maifreda usava durante a celebração da missa, criando uma associação entre santidade e autoridade clerical, aqui representadas por modelos femininos.18 Bárbara Newman talvez seja a autora que mais profundamente analisa a questão da relação entre Guglielma e o Espirito Santo. A autora busca traçar uma linha evolutiva ao longo da Idade Média acerca das representações da santidade e espiritualidade femininas, utilizando para isso dois modelos que, segundo ela, abarcam as transforma- ções ocorridas neste movimento: a virago, o ideal da virgem viril, ou seja, a mulher que, afastando-se da prática sexual, era vista como a mais significativa da corporeidade, e internalizando características masculinas, tornava-se capaz de se aproximar do divino e alcançar a santidade; e a Mulher-Cristo, um modelo surgido a partir do que Newman chama de uma mudança nas “estratégias de gênero”, que levou as mulheres, sobretudo dos séculos finais da Idade Média, a refletirem ou reproduzirem, através de sua espiritualidade, um aspecto feminino de Deus, materializado através da imitação de Cristo.19 Assim como Puricelli havia proposto, Newman levanta possibilidade de que o movimento dos guglielmitas estivesse no bojo de uma corrente alternativa de longíssima duração dentro do cristianismo, segundo a qual o tema esotérico do Espírito Santo como mulher servia como fio condutor para uma crítica mais enfática à Igreja. Os elementos heréticos presentes nas crenças guglielmitas, ou seja, deidade feminina, liderança religiosa feminina e apocalipsismo ligado a ideais 18 COSTA, Patrizia. Guglielma la Boema, l’eritica di Chiaravalle... Op. Cit., p. 108. 19 NEWMAN, Barbara. From Virile Woman to WomanChrist. Studies in Medieval Religion and Literature. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995, p. 3-4. 112 milenaristas, “eram ideias ligadas não por uma lógica teológica, mas pelo seu destino comum: todos os três foram repudiados desde muito cedo pela Igreja oficial”.20 Apesar de ponderar no sentido de ver o a associação entre Guglielma e o Espírito Santo como reflexo de uma tendência atemporal de confronto com a Igreja institucionalizada, Newman em momento nenhum afirma ser esta uma iniciativa, no caso do gugleilmitas, como partindo de uma prerrogativa exclusivamente masculina, como propõem Bynum e Costa. Ao contrário, ela realça a importância de Maifreda no grupo, afirmando que a associação feita entre Guglielma e Deus está diretamente ligada ao papel de liderança desempenhado pela soror humiliata como sua papisa. Sem que Maifreda tivesse assumido esse papel, fundado, sobretudo, na sua afirmação de contato com a santa a partir de visões, Guglielma teria sido considerada apenas como mais uma beata e o grupo não teria sido considerado herético.21 Marina Benedetti é a autora com a mais extensa bibliografia acerca de Guglielma e seus devotos e com a qual esta pesquisa mais dialogará.22 Mais preocupada com o rigor metodológico da pesquisa que os demais autores aqui citados, ela trabalha com a hipótese de constru- ções elaboradas pelos inquisidores a partir dos depoimentos que acabaram por delimitar o movimento guglielmita como herético a partir de apenas alguns depoimentos, uma vez que apenas parte dos devotos realmente acreditava na associação entre Guglielma e o Espirito Santo.23 Um dos principais pontos ressaltados pela autora para afirmar que a imagem de Guglielma “ao negativo”, herege, foi construída pelos inquisidores a partir do depoimento de alguns poucos devotos, é o fato 20 Ibidem, p. 184. 21 Ibidem, p. 192. 22 Os trabalhos escritos especificamente sobre este tema são BENEDETTI, Marina. Il culto di santa Guglielma e gli inquisitori. In: MERLO, G.; BENEDETTI, M.; PIAZZA, A. Vite di eretici e storie dei frati. Milano: Biblioteca Francescana, 1998, p. 221-241; ___. Io non sono Dio: Guglielma di Milano e i Figli dello Spirito santo. Milano: Edizioni Biblioteca Francescana, 1998; ___. Le ultime volontà di un’eretica. In: ROSSI, Maria Clara. Margini di libertà: testamenti femminili nel medioevo. Verona, 2010, pp. 489-511. Além disso, nesta pesquisa utilizaremos a edição crítica do processo inquisitorial elaborado por esta autora, ___. (Ed.). Milano 1300. I processi inquisitorial contro le devote e i devoti di santa Guglielma. Milano: Libri Scheiwiller, 1999. 23 BENEDETTI, Marina. Io non sono Dio... Op. Cit., p. 75. 113 de ela ter tido sua santidade reconhecida e promovida pelos monges da abadia de Chiaravalle em Milão.24 Após observarmos as tendências seguidas pelos autores que desenvolveram trabalhos a partir da análise do processo inquisitorial, buscaremos resumi-las para posteriormente nos posicionarmos em relação à bibliografia selecionada, no intuito de delimitarmos o ponto de partida de nossa análise. A primeira tendência que pudemos observar é apresentada, sobretudo, pelas primeiras obras elaboradas a partir da análise do processo inquisitorial. Estes trabalhos foram marcados por uma preocupação nitidamente voltada para a questão das origens e do desenvolvimento da heresia. Nesta tendência, os trabalhos possuem poucos pontos relacionados ao nosso objeto, a saber, a santidade de Guglielma, mas há nessas obras algumas reflexões, sobretudo de caráter contextual, que são imprescindíveis para o desenvolvimento nossos argumentos. A segunda tendência aponta para a associação entre as crenças e práticas identificadas como Imitatio Christi e a figura de Guglielma. Seguimos esta tendência, uma vez que entendemos que á através da compreensão acerca destas crenças e práticas que poderemos melhor abarcar o conhecimento produzido sobre o culto destinado à santa da qual versam os relatos presentes no processo inquisitorial. Uma terceira linha que pode ser destacada é aquela que propõe novas formas de abordagem a partir da categoria gênero. No entanto, nosso posicionamento em relação a essas obras é crítico no sentido de identificar nelas uma dicotomização naturalizada de masculino e feminino, que vê no caso dos guglielmitas uma tentativa de algumas mulheres tomarem o lugar de homens, em uma perspectiva que refor- ça a aceitação de uma visão de sociedade marcada pela inquestionável dominação masculina. Afastamo-nos desta tendência pois, em nossa análise, procuraremos questionar tais dicotomias, não apenas masculino/feminino, como também santa/heresiarca, religiosidade regular/religiosidade leiga, Imitação de Cristo/Imitação de Maria, de modo que possamos identificá-las e, posteriormente, analisar, comparativamente, as suas contradições e os seus limites. 24 Ibidem, p. 52. 114 Uma quarta tendência, que poderia ser entendida como a junção das duas últimas aqui apresentadas, será na qual fundamentaremos nossa pesquisa, levando em conta as ressalvas feitas anteriormente quanto à aplicação dos Estudos de Gênero. Essa linha demonstra uma preocupação maior com a questão da santidade de Guglielma e com o caráter feminino desta santidade. As principais contribuições destas obras são as reflexões feitas acerca da relação entre a santidade feminina, representada pela figura de Guglielma, e a liderança religiosa feminina, empreendida por Maifreda da Pirovano, no sentido de demonstrar a fluidez da experiência espiritual a partir de diferentes níveis de relacionamento com o divino. A última tendência por nós observada se refere aos trabalhos de Marina Benedetti, que enfatiza as questões institucionais relativas ao culto dedicado à Guglielma em diversas instâncias: entre os leigos e mulheres semirreligiosas, humiliatas; entre os monges da abadia de Chiaravalle; e, por fim, como este culto foi tratado pelos inquisidores, que acabaram por construir a memória da santa como herege. A abordagem de Benedetti será também seguida por nós, uma vez que entendemos que a questão institucional da santidade constitui elemento importantíssimo para o desenvolvimento da pesquisa sobre nosso objeto. Dessa forma, nosso posicionamento em relação à bibliografia consultada se delimita como uma nova possibilidade de pesquisa, a partir da categoria gênero, dos relatos acerca da santidade de Guglielma, levando em considera- ção todos os elementos de relações de poder envolvidos na construção dessa santidade, bem como no modo como sua imagem passou de consagrada à heterodoxa, como se pode observar pelos registros do processo inquisitorial.

 
 
 

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