"Traduzir é o Verdadeiro mode de ler um texto"
- Armando Ensino de Idiomas
- 2 de jul. de 2016
- 16 min de leitura
Tudo pode mudar, mas não a língua que carregamos dentro de nós
e que, aliás, nos contém dentro de si como um mundo
mais exclusivo e definitivo que o ventre materno.
Italo Calvino
Como o título sugere, o objeto desse texto é considerar a relação
de Italo Calvino com a tradução a partir de alguns textos
do autor, publicados, que remetem explicitamente à tradução. As
contribuições de Calvino nesse sentido são inúmeras: reflexões,
observações, experiências. Para tanto, tornam-se necessárias algumas
observações preliminares.
A primeira delas é que Calvino apresenta a peculiaridade de ter
nascido, por assim dizer, sob o signo da multiculturalidade — ou
do cosmopolitismo, como diria o crítico italiano Asor Rosa (2001)
— e do multilinguismo. Basta pensar em seu nascimento em Santiago
de Las Vegas, em Cuba. Embora ele tenha voltado ainda
muito pequeno à Itália, trata-se de um fato ao qual o autor não
era indiferente e que, aliás, despertava sua curiosidade. Tanto assim
que, ao se tornar partigiano, escolheu como nome de guerra
Santiago, justamente. Sabemos também que, após sua participação
na resistência durante a Segunda Guerra, Calvino se matricula na
Faculdade de Letras de Turim, e concluirá seu curso com uma
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tese sobre Joseph Conrad, isto é, um escritor britânico de origem
polonesa — e aqui temos um período de “convivência”, por assim
dizer, com a literatura inglesa, e o primeiro contato com a tradução
propriamente dita. Há também outros fatores pessoais a considerar:
Italo Calvino, como se sabe, casa-se com uma argentina, e vai
precisamente a Cuba para celebrar seu casamento com Chichita —
que, como o autor nos revela, fala com ele no espanhol de Rio de
La Plata. O casal vai viver em Paris. A filha, Giovanna Abigail,
fala com o pai “nel francese delle scolaresche popolari parigine”
1
.
Uma verdadeira babel doméstica, que, de certo modo, recorda a
da família de origem. Pai da Ligúria, mãe da Sardenha — mãe
severa, que, ao tomar as rédeas da educação de Calvino, banirá a
expressão dialetal. A figura do pai, aquele pai granítico descrito
com tanto sofrimento e de forma tão expressiva em O caminho
de San Giovanni (1995), pai frequentador de beudi e caminhos de
mulas, aquele pai que sobe ao campo enquanto Calvino desce para
a cidade… Pois bem, aquele pai do qual Calvino se afasta tomando
a direção exatamente oposta, aquele pai conhecia um dialeto rico
e expressivo, ainda sugestivo, o “dialeto antigo”, dirá Calvino,
ainda não desgastado ou degradado, que por certo tempo inspirará
a expressão calviniana (e do qual, mais tarde, ele vai se afastar).
Ainda nesse sentido, não podemos desconsiderar que, por exemplo,
durante todo o intervalo parisiense – como se sabe ele morará em
Paris de 1964 a 1980 – Calvino sentirá novamente a necessidade
de tradução — em todos os sentidos. Tampouco podemos ignorar
a breve, mas intensa, passagem pelos Estados Unidos, mais tarde
exposta em Um eremita em Paris (1994), que o levará a afirmar ser
Nova York sua cidade ideal.
Enfim, essa breve premissa biográfica nos auxilia na considera-
ção atenta do caráter multicultural em que Calvino nasce e cresce
e que frequentará a vida toda. É bem aqui, na minha opinião, que
reside a origem daquilo que o prof. Wander de Melo Miranda
denominou “espaço ao estrangeiro” (informação verbal)2
, sempre
presente no autor. Ou seja, a visão ampla de Calvino, uma visão
que guarda um caráter ‘estrangeiro’ mesmo na pátria, que propor-
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ciona a liberdade do olhar da cultura estrangeira sobre a cultura
local. Esse é, na prática, o espaço de sua “natural”, “inata” consciência
do outro, da alteridade, do estrangeiro, que nasce, podemos
dizer, pari passu com nosso autor (e, numa segunda etapa,
se reafirmará pari passu com sua vida intelectual, principalmente
a do colaborador da editora Einaudi). Poderíamos ir mais longe e
afirmar que Calvino nasce em clima de bilinguismo. Embora seu
percurso intelectual seja variado também quanto à avaliação que
faz e ao peso que confere ao dialeto em sua expressividade, o autor
afirma claramente ter vivido em ambiente dialetal até aproximadamente
seus vinte e cinco anos (CALVINO, 2002b, p. 227):
Ho vissuto quasi ininterrottamente a Sanremo i primi venticinque
anni della mia vita, in tempi in cui la popolazione
autoctona era ancora la maggioranza. Vivevo in un ambiente
agricolo dove si parlava prevalentemente il dialetto, e
mio padre [...] parlava un dialetto molto più ricco e preciso
ed espressivo di quello dei miei coetanei. Sono dunque
cresciuto imbevuto di dialetto, ma senza mai imparare a
parlarlo [...], (Devo dire che non ho mai appreso a parlare
fluentemente in nessun idioma, anche perché per carattere
sono sempre stato di poche parole; e presto i miei bisogni
espressivi e comunicativi si sono polarizzati sulla lingua
scritta)3
.
O que Calvino faz inicialmente, e o diz claramente, é utilizar o
dialeto, aquele dialeto, como modelo, para sua língua de escritor,
porque, sentindo como falsa a língua utilizada pela maioria das pessoas
que escrevem, a proximidade com o falado popular lhe parecia
uma garantia de autenticidade. Lembramos aqui a centralidade
da reflexão daqueles anos em torno de uma língua italiana, presente
constantemente na vida do escritor. Em 1959, ao responder a uma
das 9 perguntas sobre o romance ele diz se valer do dialeto como
ponto de referência em determinadas escolhas linguísticas e lexicais:
“Una volta stabilito che sotto al mio italiano c`è il dialetto x,
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sceglierò di preferenza vocaboli, costruzioni, usi, che si rifanno al
clima linguistico x, anziché vocaboli e costruzioni e usi che si rifanno
ad altre tradizioni” (CALVINO, 2002a, p. 34)4
. E acrescenta
que é possível prosseguir com esse método para dar coerência e
clareza a uma linguagem narrativa, contanto que ele não atue como
limitação das capacidades expressivas. Caso isso aconteça, “non
c’è che mandarlo al diavolo”
5
.
Como já foi observado, a influência dialetal em Calvino se mostra
mais forte nos textos iniciais, até o “Barone rampante” (1957).
Na realidade, o próprio autor tem um percurso mutável no que
tange ao uso do dialeto, desde um momento inicial em que deseja
utilizá-lo até encontrar, mais tarde, uma cifra estilística e expressiva
própria. Em Il midollo del leone (1980), Calvino se pronuncia
contrário ao uso do dialeto: “la lingua letteraria deve continuamente
tenersi attenta ai volgari parlati, e nutrirsene e rinnovarsene, ma
non deve annullarsi in essi, né scimmiottarli per gioco”
6
. As afirmações
contrárias ao uso do dialeto e a favor de sua dissolução em
outra expressão, “como plasma oculto mas vital”, são claramente
anteriores ao prefácio de 1964 a Il sentiero dei nidi di ragno7
, e não
se limitam ao famoso parágrafo de Il midollo del leone. Segundo
Bertone (1994, p. 77), Pavese teria sido o prosador que mais levou
Calvino ao caminho da absorção do dialeto e, em paralelo, a uma
superação do empasse regional. Enfim, ao menos por certo período,
temos um Calvino que se traduz e que quer traduzir ao ler o
mundo. Que precisa ‘inventar’ uma língua inexistente a cada vez
que se debruça numa nova obra. Mas essa língua se alimenta, como
diz o próprio autor, do dialeto. E o prazer do dialeto ainda pode
ser notado em alguns de seus escritos, embora Calvino afirme o
contrário. O conto “Dall’opaco” (1971) por exemplo, hoje contido
em La Strada di San Giovanni8
, centra-se totalmente em um jogo
lexical e imagético do autor sobre um vocábulo dialetal, uma tentativa
de traduzir em palavras uma imagem cada vez mais precisa —
aquela dos campos da Ligúria, dos típicos “terraços” em degraus
—, de traduzi-la em uma linguagem descritiva que se apresenta
num crescendo de síntese e de eliminação do supérfluo. A palavra é
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tão importante que o escritor sente que só poderia usar o seu dialeto
para descrever aquela paisagem tão específica. A palavra dialetal,
conforme afirma Bertone9
, e precisamente a partir desse exemplo,
vai se tornando metalinguística, até se tornar símbolo. Nem cabe
aqui considerar o peso da questão política subjacente a essa escolha
por uma língua a ser inventada e fora da hegemonia do toscano em
Calvino; será suficiente recordar essa presença. O que mais nos
interessa é que, aqui, tocamos outro aspecto fundamental. Foi dito
em diversas ocasiões que Calvino é um autor visual, que sua escrita
muitas vezes nada mais é do que uma “tradução intersemiótica”
daquilo que seu olhar curioso e inquieto apreende. Esse aspecto em
si é tão relevante que poderia ser objeto de outro estudo específico.
Aqui, no entanto, podemos observar como a tradução do mundo
é, em primeiro lugar, parte de si, para depois, então, se alargar às
coisas do mundo. Lê-se em Palomar:
Il signor Palomar pensa che ogni traduzione richiede
un’altra traduzione e così via. Si domanda: “Cosa voleva
dire morte, vita, continuità, passaggio, per gli antichi Toltechi?
E cosa può voler dire per questi ragazzi? E per me?
Eppure sa che non potrebbe mai soffocare in sé il bisogno
di tradurre, di passare da un linguaggio all’altro, da figure
concrete a parole astratte, da simboli astratti a esperienze
concrete, di tessere e ritessere una rete d’analogie. Non
interpretare è impossibile, come è impossibile trattenersi
dal pensare. (CALVINO, 1983, p. 100)10
.
Essas coisas do mundo, à medida que o tempo passa, Calvino
parece observá-las e descrevê-las cada vez mais de um ponto de
vista fenomenológico, retornando às próprias coisas com um olhar
puro, novo, o mais inocente possível. Nesse sentido, Palomar e
seus experimentos descritivos parecem constituir seu exercício má-
ximo. Calvino afirma, em seu ensaio Mondo scritto e mondo non
scritto, que dá o nome ao volume: “Forse la prima operazione per
rinnovare un rapporto tra linguaggio e mondo è la più semplice:
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fissare l’attenzione su un oggetto qualsiasi, il più banale e familiare,
e descriverlo minuziosamente come se fosse la cosa più nuova e
interessante dell’universo” (CALVINO, 2002a, p.122)11
. Não seria
essa a declaração de uma verdadeira redução fenomenológica,
o exercício da filosofia fenomenológica em ficção?
O segundo aspecto fundamental é a experiência de trabalho, a vivência
de Calvino com relação à tradução. Dessa vez estamos diante
de um aspecto não duplo, mas múltiplo. Se até agora notamos as relações
pessoais que aproximam Calvino da tradução em sentido lato,
agora podemos observar que ele experimenta a tradução editorial em
três planos diferentes, de três pontos de vista diversos:
1. como editor;
2. como autor traduzido;
3. como tradutor (ainda que rara e escassa, sua experiência de
tradutor nada teve de superficial).
Em sua vida pessoal, a tradução vai ganhando cada vez mais
espaço. Depois de se casar com uma intérprete, ele se muda para
a França e, se em 1963, dirá nunca ter tentado traduzir12, em 1965
começa a traduzir Les fleurs bleu (1965) de Raymond Queneau,
uma operação temerária, arriscada que, no entanto, parece iluminar
uma faceta inusitada do Calvino ”leitor dos outros”.
No que tange ao Calvino editor, sua contribuição talvez mais
marcante e evidente à tradução é aquela contida na carta intitulada
“Sul tradurre” (1963) endereçada originalmente ao diretor da revista
Paragone e mais tarde publicada em livro13. Nessa carta, Calvino
toma a defesa da tradutora Adriana Motti e, ao mesmo tempo,
procura sugerir e delimitar o papel que, na sua opinião, um crítico
digno de tal nome deveria ter. A carta responde a uma crítica (que
Calvino considera injusta e demasiado dura) de Claudio Gorlier à
tradução italiana de A Passage to India (1924) de E.M. Forster,
publicada, naturalmente, pela Einaudi, editada sob sua batuta. Trata-se
de uma carta embebida de ironia, nem sempre sutil, mas também,
e sobretudo, de reflexões absoluta e espantosamente atuais.
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Calvino constrói um discurso no qual estabelece um diálogo com
cada observação do crítico, respondendo ponto por ponto à sua
matéria. É preciso frisar, que o crítico, na verdade, fora bastante
corrosivo, e Calvino não resiste à tentação de ironizar sua atitude,
sempre que possível, ao longo dessa sua réplica. Tentarei resumir
os argumentos de Calvino de maneira sistemática e descritiva:
• Uma boa crítica, que entre no mérito da tradução, é necessária,
quer para a editora, quer para o tradutor e para o
público;
• Ao crítico, cabe uma responsabilidade técnica absoluta, de
outro modo o trabalho se torna contraproducente e nada
mais faz que desmoralizar o tradutor;
• A crítica, portanto, deve ser realizada seriamente, com
amostragens válidas, e não se basear numa expressão que
“non gli garba [al critico]” está referenciado na nota 13,
acima. Em todo caso é Calvino, 2002a, p. 48 ) [não agrada
ao crítico], o qual, em dois minutos, destrói talvez um trabalho
enorme, talvez bom, e com consequências ruins para o
tradutor, sujeito a uma única critica, e não a diversas, como
no caso, por exemplo, do escritor.
Já nesses argumentos, notamos como, infelizmente, o panorama
atual parece repetir uma situação lamentável que já existia na
Itália daqueles tempos. Carecemos de (boas) críticas à tradução,
aliás, nos últimos anos carecemos de qualquer crítica. Tanto no
Brasil como (ainda) na Itália. Mas não nos aventuraremos nesse
tema, que constitui, em si, um estudo à parte. Aqui basta enfatizar
a atualidade das reflexões do nosso autor sobre a pertinência, a
necessidade até, de uma crítica às traduções literárias, para todos
os sujeitos envolvidos nessa relação: do editor ao tradutor ao leitor,
justamente. Em seguida, Calvino discorre sobre a disponibilidade
real de bons tradutores, afirmando que, apesar de ter aumentado o
número de jovens de boa vontade que “conhecem bem ou discretamente
uma língua estrangeira”, esse aumento não corresponde
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a uma “base maior” de tradutores entre os quais poder escolher.
Isso porque se é verdade que o número de jovens que conhecem
uma língua estrangeira aumentou, também é verdade que o número
daqueles jovens capazes de escrever italiano com dotes de agilidade,
de segurança na escolha lexical, de economia sintática, de
sentido dos diversos níveis linguísticos (ou seja, com inteligência
de estilo), é cada vez menor. Mas o que Calvino entende por “inteligência
do estilo”? Numa de suas habituais digressões, ele abre
aqui uma brecha reveladora: “inteligência de estilo consiste, por
um lado, em compreender as peculiaridades estilísticas do autor a
traduzir, e, por outro, em saber propor os equivalentes em italiano,
numa prosa que se leia como se tivesse sido pensada e escrita
diretamente em italiano): os dotes, precisamente, nos quais reside
o talento singular do tradutor”. Calvino afirma também que, além
desses dotes técnicos, o tradutor precisa ter dotes morais, que consistem
na insistência e na persistência do tradutor, impelido por um
tormento de perfeição que, declara, “tem que se tornar uma espé-
cie de loucura metódica”. Calvino, portanto, sugere aqui que seu
ideal tradutório é uma tensão (e atenção) constante à literariedade,
alimentada por uma espécie de obsessão, capaz de levar a um texto
de chegada vestido de trajes locais, sem rasgos capazes de revelar-lhe
a origem. Noutras palavras, ao enfrentar a antiga questão,
Calvino se mostra aqui mais propenso, utilizando a terminologia
moderna, à tendência domesticadora.
O segundo texto calviniano mais conhecido sobre tradução, cujo
título já é bastante eloquente, é “Tradurre è il vero modo di leggere
un testo” [Traduzir é o modo verdadeiro de ler um texto] de
1982. Escrito originalmente para uma comunicação apresentada
em Roma, inaugurando, precisamente, um congresso de tradutores,
está hoje publicado em Mondo scritto e mondo non scritto
(2002a, p. 84-91). Nesse texto, Calvino enfatiza a importância do
ato comunicativo da escrita, já que, para que um livro possa ser
traduzido, deve haver motivos tanto de originalidade quanto de
universalidade, e nesse sentido o autor considera ter a linguagem
uma importância máxima, porque – e nessa altura Calvino fala de
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“voz do texto”, literalmente voz – “para obter a atenção do leitor
esta voz deve ter “certo tom, certo timbre, certa vivacidade” sendo
portanto falaciosa a ideia – superficial – de que um escritor de
tom neutro seria o mais “exportável”, além de apresentar menos
problemas de tradução. Partindo da ideia de literatura como comunicação,
esta deve ser estabelecida mediante o “sotaque peculiar
do escritor”, e isso pode se dar mesmo em nível coloquial. O autor
conclui afirmando ser a tradução uma arte (e aqui poderíamos
abrir um parêntesis sobre o vocábulo, em todo o significado que
essa palavra carrega em si, mesmo apenas potencialmente), e diz
“il passaggio di un testo letterario […] in un’altra lingua richiede
ogni volta un qualche tipo di miracolo” (CALVINO, 2002a, p.86,
4-91, grifo meu)14. Então o tradutor é aquele que coloca em jogo a
si mesmo por inteiro, para traduzir o que é intraduzível. Milagre,
sabemos, é um fato extraordinário, que beira o inacreditável. Algo,
em sua essência, impossível. É altamente sugestiva essa configura-
ção da tradução como milagre.
Com sua precisão e nitidez de diamante, como dizia Elsa Morante
Calvino afirma que muitas vezes se decepciona com as tradu-
ções de seus livros, porque considera que se muitas vezes se perdem
as sutilezas expressivas do texto, mesmo em traduções muito
‘fiéis” (ou por isso mesmo? Como não pensar nessa antiga questão
nos termos ciceronianos, ou, ainda, nos termos de Horácio, em sua
Arte poética? (entre 19 e 13 a.c.). Calvino apresenta, a título de
exemplo, a decepção causada por uma tradução em que se perde
ironia ou ritmo, como no caso de uma oração subordinada, que o
autor sente veloz em seu texto, mas que na tradução adquire “importância
e peso injustificados”. Para a seguir reafirmar: “Tradurre
è il vero modo di leggere un testo” e, “per lo scrittore, riflettere
sulla traduzione di un proprio testo, il discutere con il traduttore,
è il vero modo di leggere se stessi, di capire bene cosa ha scritto,
e perché” (CALVINO, 2002a, p. 87)15
. Nessa passagem, o autor
toca outro ponto nevrálgico para a tradução, em geral capaz de
gerar riqueza, mas nem sempre realizável, que é o da colaboração
entre o autor e o tradutor. Que, para além do interesse comum e
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imediato de obter-se uma boa tradução, passa a significar, para Calvino,
um momento de reflexão que lhe revela, banhado por nova
luz, tanto o próprio texto, quanto as motivações que o levaram a
escrever aquele texto, e daquela maneira. Fala, ainda, em “spirito
del testo”, afirmando que quanto menos o tradutor se sentir tentado
a fazer de sua tradução uma cópia literal, tanto mais estará apto a
salvar esse espírito. Ademais, considera extremamente importantes
as perguntas que um tradutor dirige a um autor, arriscando-se a
dizer que, conforme as perguntas, ele, Calvino, consegue emitir
um juízo sobre a qualidade do tradutor. Afirma crer na função de
uma editora, na colaboração entre editor e tradutor, e se queixa
(já naquela época) de que essa colaboração estava ficando rara,
quase inexistente. A seguir, então, o escritor toca numa questão
central em toda a sua reflexão, quase uma obsessão: as dificuldades
específicas de um escritor italiano — e, portanto, dos tradutores
—, que, a cada vez, têm um problema com a própria língua, pela
distância existente entre a fala natural e a linguagem escrita: os
italianos nunca terminam uma frase, o italiano corrente tende a
“desaparecer o tempo todo no nada”, ao passo que o escrito pede
que se termine a fase, abrindo aí uma bela distância entre os dois.
Para ele, “lo scrittore italiano vive sempre in uno stato di nevrosi
linguística”
16 (CALVINO, 2002a, p. 90), até porque precisa se
distanciar das linguagens setoriais, mas não pode usar a linguagem
falada comum, já que trabalha dentro de uma tradição literária que
tem por cerne a poesia, e não a prosa, com as consequências que
se pode depreender dessa falta de um modelo válido. Em suma, a
problematização da linguagem, somada às particularidades complicadoras
do italiano, criam em Calvino uma tensão constante em
relação à própria expressão. Diante de tudo isso, Calvino conclui,
com sua marca um tanto melancólica, um tanto irônica: “lo scrittore
italiano può insegnare una sola cosa: affrontare la depressione,
male del nostro tempo, difendendosi con l’ironia” (CALVINO,
2002a, p. 91)17
.
Haveria, ainda, que comentar sua empreitada tradutória mais
conhecida, ou seja, a tradução para o italiano de Les fleurs bleues
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de Queneau. Nela, Calvino decide experimentar na prática a teoria
que elabora a partir da leitura de Mounin (1965) e da linguística de
Saussure. O posfácio calviniano (1984) apresenta inúmeros exemplos
das diversas dificuldades tradutórias do texto de Queneau,
descrevendo assim o caminho intencional do tradutor. Mas aqui
nos interessa apontar, antes, o que Calvino diz a esse propósito
em seu “Furti ad arte. Conversazione con Tullio Pericoli” (1980),
hoje contido em Mondo scritto e mondo non scritto (CALVINO,
2002a, p. 67-83). Tullio Pericoli, artista plástico amigo de Calvino,
estava inaugurando uma nova mostra, Rubare a Klee (1980).
É nessa ocasião que se dá a conversa entre os dois artistas, e a
parte que nos interessa mais, ligada à tradução. Pericolirecorda a
Calvino o exercício de Queneau em Exercices de style (1947), no
qual o autor francês narra a mesma história de 99 pontos de vista
diferentes. E lembra Calvino de sua tradução de Les fleurs bleues,
incitando-o a falar da relação que se estabelece entre tradutor e
texto. Calvino responde: “Tradurre è il sistema più assoluto di
lettura. Bisogna leggere il testo nelle implicazioni di ogni parola”
(CALVINO, 2002°, p. 74)18 e acrescenta que ali se preocupou em
restituir os jogos de palavras existentes no texto original, substituindo-os
por outros, mas de maneira a manter o ritmo do texto,
sua leveza e a mesma necessidade interior. Para Calvino, há um
“furto con scasso in ogni lettura, in ogni vera lettura”
19 — e a leitura
é necessária à tradução —, como quem arromba um cofre para
roubar-lhe o segredo. A experiência de ser traduzido é, para ele,
do mesmo gênero, um modo de ler a si próprio. “Ogni volta che
discuto con un traduttore dei miei libri, nelle lingue che conosco,
sono obbligato a ripercorrere il mio lavoro con un altro occhio”
(CALVINO, 2002a, p. 75)20
. Mas o roubo, nesses casos, é previsto
e necessário: “Naturalmente i quadri e le opere letterarie sono
costruire apposta per essere derubate, in questo senso. Così come
il labirinto è costruito apposta perché ci si perda, ma anche perché
ci si ritrovi” (CALVINO, 2002a, p. 75)21
. O último aspecto que é
preciso comentar, diz respeito aos personagens de Calvino, mais
especificamente a um personagem do tradutor, ao personagem tra-
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dutor, ou seja, a Ermes Marana, apresentado em complementariedade
ou oposição a Silas Flanery, o personagem-escritor de Se
una notte d’inverno un viaggiatore. Afinal, Ermes é o responsável
pelos enganos, pela confusão entre os diversos livros, é falsário
por amor, e para ele a literatura só tem valor em virtude de seu
poder mistificador. Além de ser um romance, esta obra calviniana
é uma exemplificação plena da ficção pós-moderna, ou ao menos
assim pode ser lido. E é um livro que retrata, em viés irônico, todo
o universo editorial de que Calvino participou em primeira pessoa.
É evidente o aspecto de alter ego que o escritor Silas Flanery tem
para Calvino. É curiosa essa figura paródica, esse tradutor-personagem
que é criador de uma rede de enganos e também é responsável
por misturar textos diferentes, que faz passar como se fossem
partes do mesmo livro. Esse tradutor falsário, esse trambiqueiro,
está ligado à APO, a “Organização do poder apócrifo”, que produz
livros contrafeitos mundo afora, e é presidente de uma associação
ambígua, a OEPHLW ou “Organização para a produção eletrônica
de obras literárias homogeneizadas”. Ora, nessa que é uma perfeita
paródia do mundo editorial, o tradutor em questão não transmite
uma imagem edificante, e está longe de ser aquele tradutor ideal
descrito por Calvino nos textos anteriormente comentados. Se é
verdade que não raro temos um Calvino que, tanto nos textos ficcionais
quanto nos textos ensaísticos, é perfeitamente coerente, a
ponto de muitas vezes podermos encetar um diálogo entre os dois
tipos de texto, que parecem dialogar numa sinfonia subjacente, ainda
resta dar uma resposta ao caráter caricatural desse falsificador
que se passa por tradutor...
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Notas
1. “no francês popular do alunato parisiense”, Cf. CALVINO, 2002b, p. 228,
tradução minha.
2. MIRANDA, W. M. Italo Calvino, um clássico experimental. In: IV SIMPÓ-
SIO ITALO CALVINO. UFMG, 2014.
3. “Vivi quase ininterruptamente em Sanremo os vinte e cinco anos iniciais de
minha vida, numa época em que a população autóctone ainda era a maioria. Vivia
num ambiente agrícola, no qual se falava predominantemente em dialeto, e
meu pai (…) falava um dialeto muito mais rico e preciso e expressivo do que
aquele dos meus coetâneos. Portanto cresci ensopado de dialeto, mas sem nunca
aprender a falá-lo (…), (Devo dizer que nunca aprendi a falar fluentemente em
nenhum idioma, até porque por índole sempre fui de poucas palavras; e logo minhas
necessidades expressivas e comunicativas polarizaram-se na língua escrita)”,
tradução minha.
4. Risposte a 9 domande sul romanzo (1959). Hoje em CALVINO, 2002a, p.
34. “Uma vez que determinei que sob meu italiano há o dialeto x, escolherei,
de preferência, vocábulos, construções e usos que remetem ao clima linguístico
x, em lugar de vocábulos e construções e usos que remetem a outras tradições”,
tradução minha.
5. Idem, ibidem. “Só resta mandá-lo para o diabo”, tradução minha.
6. Calvino, I. Il midollo del leone. Hoje em Una pietra sopra. Milano: Mondadori,
1995. Ed. Bras: O miolo do leão. CALVINO, 2009, p. 17. “A língua
literária deve, isso sim, manter-se o tempo todo atenta aos vulgares falados, e
alimentar-se deles e renovar-se com eles, mas não deve se anular neles, nem
imitá-los por brincadeira”.
7. A trilha dos ninhos de aranha.
8. Dall’opaco [Do opaco] foi primeiramente publicado na revista “Adelphiana”,1971,
e a seguir foi publicado em livro na coletânea (póstuma) La strada di
San Giovanni (O caminho de San Giovanni).
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“Traduzir é o modo verdadeiro de ler um texto”:...
9. Idem, ibidem.
10. “O senhor Palomar pensa que toda tradução requer uma outra tradução, e
assim por diante. Pergunta-se a si mesmo: “Que quereria dizer morte, vida, continuidade,
passagem para os antigos toltecas? E que poderá querer dizer para
esses garotos? E para mim?”. Contudo, sabe que não poderia jamais sufocar em
si a necessidade de traduzir, de passar de uma linguagem a outra, de uma figura
concreta a palavras abstratas, de símbolos abstratos a experiências concretas, de
tecer e tornar a tecer uma rede de analogias. Não interpretar é impossível, como
é impossível abster-se de pensar”.
11. “Talvez a primeira operação para renovar uma relação entre linguagem e
mundo seja a mais simples: fixar a atenção em um objeto qualquer, o mais banal
e familiar, e descrevê-lo minuciosamente como se fosse a coisa mais nova e interessante
do universo”.
12. Na verdade sabe-se de algumas experiências anteriores de tradução por parte
de Italo Calvino. Em português, pode-se ver a síntese apresentada por GUERINI
E MOYSÉS, 2010/1, p. 29-50.
13. Hoje em CALVINO, 2002A, p. 47-59.
14. “A passagem de um texto literário (…) em outra língua requer, a cada vez,
algum tipo de milagre”.
15. “Traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto” e “para o escritor a reflexão
sobre a tradução de um texto seu, a discussão com o tradutor, é o verdadeiro
modo de ler a si mesmo, de compreender direito o que ele escreveu, e por que”.
16. “O escritor italiano sempre vive em um estado de neurose linguística”.
17. “O escritor italiano pode ensinar uma só coisa: enfrentar a depressão, mal de
nossa época, defendendo-se com a ironia”.
18. “Traduzir é o método mais absoluto de leitura. É preciso ler o texto nas implicações
de toda palavra”.
Cad. Trad. (Florianópolis, Online), V. 35, n.2, p. 85-101, jul-dez/2015 100
Roberta Barni
19. “Roubo com arrombamento em toda leitura, em toda verdadeira leitura”.
20. “Toda vez que discuto com um tradutor sobre os meus livros, nas línguas que
conheço, sou obrigado a repercorrer o meu trabalho com outra visão”.
21. “Naturalmente os quadros e as obras literárias são propositadamente construí-
dos para serem saqueadas, nesse sentido. Assim como o labirinto é construído propositalmente para que nos percamos nele, mas também para que nos encontremos”.

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