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Ciclo de Estudos Medievais Introdução Abreviada.

  • Foto do escritor: Armando Ensino de Idiomas
    Armando Ensino de Idiomas
  • 2 de jul. de 2016
  • 13 min de leitura

PS: tetarei fazer um ciclo regular de estudos medievais aberto a todos.

“DEUS AMICITIA EST”. CARIDADE E AMIZADE EM PERSPECTIVA COMPARADA: AS VITAE DE BEATAS DA DIOCESE DE LIÉGE NO SÉCULO XIII FACE À DOUTRINA DA CARIDADE NA PATRÍSTICA E NA MÍSTICA CISTERCIENSE

a amizade espiritual nas vidas de beatas da diocese de Liége no século XIII, em perspectiva comparada com a doutrina da Caridade cristã na tradição testamentária, patrística e monástica - com especial atenção ao sistema teológico agostiniano e cisterciense - cremos 10 ter podido demostrar a transferência do modelo de amizade cristã masculina e monástica para o meio beguinal e conventual feminino, em uma região fortemente urbanizada, na qual os laços de solidariedade são fundamentais para a reprodução das formas de piedade mística feminina. Buscamos, sobretudo, demonstrar, através da narrativa hagiográfica, o estabelecimento de relações afetivas entre as beatas e os denominados amigos, familiares, diletos. Essas relações afetivas, cujo fundamento é o amor de Deus que elas sentem através da graça do Espírito Santo de forma absoluta, são vividas e narradas, garantem aos que as amam a ordenação dos seus afetos e assim a salvação. Os amigos, beneficiados pelo saber e poder divinos das beatas, por sua vez, testemunham seus gestos maravilhosos e garantem a veracidade do relato. Nesse sentido, os hagiógrafos buscam no sistema teológico agostiniano e cisterciense os elementos estruturantes para fundamentar as novas relações de amor e amizade, as emoções radicalmente vividas e transferidas aos outros, para predicar o ser dessas mulheres tornando a amizade uma virtude hagiográfica e os afetos sua essência. Durante nosso bacharelado entramos em contato com o relato hagiográfico através da Legenda Aurea e, por outro lado, com a teologia mística cisterciense, fundamentada na união da alma com Deus, no imperativo da salvação e, portanto, no conhecimento de si. Interessamo-nos, então, em buscar outros tipos de relatos hagiográficos e, através da Biblioteca Hagiográfica Latina, encontramos a vita de Juliana do Monte Cornillon. Essa vita, escrita em vernacular por uma amiga da beata e depois passada para o latim por um autor anônimo, nos impressionou pela diferença no tipo de narrativa face à Legenda Aurea, nos temas, no encadeamento dos fatos. Juliana era uma hospitalá- ria, uma mulher comum, mas visionária, que tentou estabelecer uma nova festividade, e encontrou a oposição dos homens, os escabinos da cidade de Liége, foi exilada e morreu só. Mas a vita de Juliana nos impressionou, sobretudo, pelo fato dela ter estabelecido um vínculo de amizade, expressada de forma veemente no vocabulário afetivo, com duas mulheres, sua biógrafa Eva de Saint-Martin e sua companheira Isabela d’Huy, a quem escolheu, pela semelhança de virtude e amor pelas coisas divinas, para ajudá-la a implementar a solenidade eucarística. Assim, empreendemos nossa dissertação de mestrado analisando as relações interpessoais ao longo dessa narrativa hagiográfica. 11 Para continuarmos nossa pesquisa procuramos outros relatos que poderiam ser semelhantes e encontramos na diocese de Liége o florescimento e a efervescência do movimento beguinal que foi descrito no relato inaugural de um novo modo de vida religiosa, a vita de Maria d’Oignies de Jacques de Vitry. Associamos essas duas narrativas com as de outras beatas produzidas na diocese de Liège pelos monges da abadia de Villers e pelo dominicano Thomas de Cantimpré,1 e consideramos que o elemento mais evidente era a mística, a Caridade e o amor maravilhoso dessas mulheres comuns, recrutadas no patriciado urbano - as mulieres religiosae, mostradas por Jacques de Vitry justamente no Prólogo à vita de Maria d’Oignies - e que, após terem experimentado a vida beguinal, passaram para a ordem cisterciense pela necessidade de enquadramento. Durante o processo de escolha de um corpus hagiográfico que fosse relevante para nossos questionamentos de então, encontramos um conjunto de narrativas produzidas em um mesmo meio sociorreligioso formado por mulheres que escolheram voluntariamente a vida religiosa fora das comunidades monásticas. Essa nova forma de piedade, situada nos limites da heterodoxia, exigia o controle das autoridades eclesiásticas, mas, por outro lado, suscitava a admira- ção dos grupos aos quais pertencia. As palavras e os gestos das mulheres religiosas foram contados nos relatos hagiográficos, ou biografias espirituais, criando uma nova tipologia de santidade. A documentação escolhida forma um conjunto homogêneo no sentido em que oferece a evidência de uma forma de piedade laica e inovadora: são escritos com informações colhidas de pessoas que as conheceram dentro das comunidades nas quais as beatas viveram. Além disso, os relatos são colocados por escrito, com o objetivo, segundo os prólogos, de consolar a comunidade da ausência da beata - dessa forma, são relatos escritos pouco tempo após sua morte. As vitae escolhidas compreendem, então, uma unidade espacial, temporal e estilística. Avançamos uma hipótese de pesquisa que 1 Os hagiógrafos são: Jacques de Vitry, (1160-1240), cônego regular de São Nicolau d’Oignies, que escreve a vita de Maria d’Oignies. Seguindo seu exemplo, o dominicano Thomas de Cantimpré (1200-1272) escreve as vitae de Cristina, a Admirável, de Margarida de Yprés e de Lutgarde d’Aywières. Os outros relatos, o de Ida de Nivelles, Ida de Louvain e Ida de Léau, segundo a crítica erudita, emanam do scriptorium da Abadia de Villers. 12 concerne à manifestação da afetividade nos relatos hagiográficos, tal como foram produzidos para o círculo de beguinas e monjas, agentes de uma experiência mística e de uma forma de espiritualidade nova. Essas mulheres espantaram seus contemporâneos, que as criticaram e perseguiram ou que, como os hagiógrafos analisados, as amaram com um amor profundo e novo, formando um círculo de devoção e de sentimentos comuns, uma “comunidade emocional”, para retomar o conceito elaborado por Barbara Rosenwein. Nesse sentido, a narrativa hagiográfica é o meio de expressão dessa nova forma de devoção, cujo acento é justamente o amor absoluto dessas mulheres por Cristo, que faz com que adquiram um saber e um conhecimento de si que permite, por sua vez, o exercício livre de uma afetividade sobre os homens e mulheres que elas amam e que são amados por elas. Para empreendermos essa pesquisa e demonstrarmos nossa hipó- tese buscamos a literatura historiográfica referente às vitae, uma vez que esse corpus hagiográfico não era inédito. Encontramos uma vasta gama de pesquisas que apontavam múltiplas direções para a compreensão dessa narrativa e desse novo tipo de espiritualidade, abordando um conjunto de questões que concernem, ao mesmo tempo, à história do gênero e à história das representações, do sentimento religioso, da santidade. Primeiramente, esse tipo de relato hagiográfico é considerado como ‘Biografias espirituais’: são relatos que são feitos logo após a morte da beata, por pessoas que estiveram próximas a elas e que se caracterizava pela extrema devoção à humanidade de Cristo, à Virgem Maria, nas graças e favores místicos. Assim, para Simone Roisin, pioneira nos estudos da hagiografia cisterciense e a narrativa de Thomas de Cantimpré, o fato de que esses relatos tenham sido escritos logo após a morte das beatas e com o apelo às testemunhas dignas de fé, garantem a veracidade das maravilhosas experiências místicas. As vidas de santos, e precisamente as biografias espirituais, são, então, uma fonte importantíssima para escrutarmos as formas de devoção, os anseios espirituais do laicato, os gestos, os comportamentos coletivos. Em seguida, a historiografia americana, com ênfase no estudo de gênero, considera a especificidade da espiritualidade feminina. Para Carolyne Bynum, as vitae demonstram a importância das práticas ascéticas (como o jejum associado à comunhão eucarística como forma 13 de controle do próprio corpo por partes das beatas) constitutivas da renúncia e da construção da identidade própria às mulheres religiosas. Mas também, a maioria das análises efetuadas sobre o movimento beguinal coloca essa primeira geração de beguinas e monjas no mesmo campo de investigação das grandes visionárias e escritoras do fim do século XIII e início do XIV, precursoras da mística renana. Michel Lauwers e M. Goodich, por sua vez, consideram que o relato hagiográfico é um mecanismo de controle da função das mulheres religiosas e serve como evidência para os processos de canonização. Ao fim, as beatas, sua espiritualidade e formas de devoção afirmam a função dos clérigos como os intermediários absolutos no sistema de salvação. Nesse sentido, a equivocidade do estatuto das beguinas aparece como uma ameaça à ordem eclesial, daí a necessidade de institucionaliza- ção e controle. Os autores aqui mencionados (dos quais não buscamos nos separar e sim apontar possibilidades diferentes de interpretação do conteúdo dessas vitae) são incisivos em mostrar a especificidade da espiritualidade feminina, o processo de institucionalização permitido através dessa narrativa clerical, mas também em afirmar a existência de um círculo de amizade que passa como evidente o que, para nós, é justamente o que era necessário tentar explicar. Assim, juntamente com Guy Philippart, buscamos uma nova interpretação do relato hagiográfico, com sendo um objeto literário, e não um texto piedoso, com o objetivo de louvar os santos locais e nacionais. Assim, a própria narrativa se tornou, objeto de análise, daí a importância da análise do vocabulário afetivo e das manifestações dos hagiógrafos sobre seu próprio texto. Nos prólogos, parte da estrutura das vitae na qual os hagiógrafos expõem com clareza o motivo da colocação por escrito dos gestos das mulheres piedosas, eles evocam sua incompetência literária diante de tão belo objeto, de fatos tão maravilhosos manifestados em mulheres comuns; e dedicam sua obra aos amigos queridos das beatas. Dessa forma, os prólogos nos mostram que o amor e a amizade estruturam esse tipo de narrativa hagiográfica. Assim, na nossa análise da estrutura narrativa própria aos Prólogos das vitae buscamos demonstrar que a função do relato hagiográfico não se limita a compor um dossiê de canonização. 14 Procurando, então, demonstrar a importância proclamada nos prólogos das relações afetivas e da Caridade, amor absoluto de Deus, na constituição da santidade beguinal, nos preocupamos em compreender o conceito de Caritas e o que ele implica: o amor do próximo (agapé, dilectio, amicitia). Buscamos compreender o vocabulário testamentário e o vocabulário patrístico, bem como o sistema teológico patrístico. Vimos então que a Agapé (Caritas), de onde vem a dileção, o amor universal, aparece em um primeiro momento contrária à philia (amicitia), o amor preferencial. Fizemos uma revisão do conceito nas Escrituras e na Patrística Grega, para poder refletir sobre a Caridade no sistema teológico agostiniano, através do Comentário da Primeira Epístola de João. Em seguida, utilizando as análises de Brian P. McGuire, vimos como se manifestam as relações de amizade no mundo monástico oriental, através da tradição dos Pais do Deserto, no qual a ideia de apatheia domina e limita as manifestações afetivas, e no Ocidente latino, herdeiro de uma ética da amizade fundamentada em Cí- cero e em Sêneca. Em seguida vimos como as relações de amizade na aristocracia latina podem se estender às mulheres, mas estamos diante de um quadro no qual a expressão das relações afetivas e seu discurso é exclusivamente masculino. Sabemos que a teologia patrística greco-latina deu uma nova dimensão ao conceito de pessoa, implicando novos valores dados às relações afetivas. Mas, considerando a teologia mística cisterciense e sua antropologia, com ênfase na ideia de individuo racional e capaz de chegar à beatitude através do amor, veiculadas nos tratado de Bernardo de Clairvaux e na doutrina da Caridade de Aelred de Rievaulx, que lhe permite criar uma doutrina sobre os affectus, foi possível perceber que a Caridade é entendida não como amor ao próximo, universal, mas como amor de amizade. Ou seja, o ideal de amizade espiritual como uma virtude monástica foi elaborado ao longo do século XII, tornando-se um dos temas maiores da antropologia cisterciense. A amizade espiritual monástica se caracteriza pelas relações intimas e preferenciais entre os monges que vivem as doçuras do Paraíso (o claustro) - eles são iguais e tendem à beatitude com um mesmo ardor e um mesmo amor. De fato, a teologia mística cisterciense, e o desenvolvimento de uma antropologia manifestada por uma consciência de si 15 e do outro acabam penetrando as outras categorias sociais, permitindo a expressão do sentimento espiritual do laicato, segundo seu modelo e seu vocabulário. Assim, indagamo-nos por que, em relação à tradição patrística e monástica, a prática e o discurso da Caridade, vivida como amor do próximo e como amizade espiritual, floresceu no meio secular e semirreligioso feminino no século XIII. Ou seja, como a teologia mística e a linguagem da amizade espiritual, celebrada nas fontes cistercienses, se estendeu para além das comunidades monásticas, influenciando a piedade laica e a manifestação das práticas afetivas que aparecem nas fontes hagiográficas relativas às mulheres piedosas da diocese de Liège. Pensamos que essa mudança e essa abertura se manifestaram de forma mais evidente nas biografias espirituais escritas pelos amigos das beatas. O corpus hagiográfico liegense mostra, de fato, que o ideal de amizade espiritual pode ser estendido em direção à mulher, mas, mais do que isso, elas não somente podem ser objeto de um amor de amizade, mas também são elas que determinam, pela sua posição privilegiada em relação ao divino, os limites e a desmedida desse amor. Nosso objetivo foi compreender o significado patrístico e cisterciense do amor de Deus e do amor ao próximo tal como aparecem nos tratados teológicos para, através de uma análise comparativa, compreender como esse amor é adaptado e ressignificado pelos hagiógrafos, sejam cistercienses, cônegos regulares ou dominicanos. A transforma- ção semântica está relacionada ao gênero literário e ao meio cultural do autor, bem como à mudança no sistema de valores que uma determinada sociedade conhece em razão de novas necessidades subjetivas, que devem ser designadas por novos signos verbais ou por uma nova compreensão do estoque de conceitos teológicos sistematizados. Assim, por meio da comparação de objetos contemporâneos, pudemos aplicar a ideia de transferência segundo Michel Espagne, com conceitos que para nós pareceram bastante operacionais, como os de recomposição e reinterpretação. Esperamos ter podido demonstrar como os monges do século XII, se esforçando para conhecer os mistérios do amor e da amizade, criaram uma nova interpretação do mandamento do amor ao próximo e, consequentemente, uma nova aceitação das relações de amor e amiza- 16 de no meio monástico. A amizade se torna, então, uma virtude hagiográfica. Nesse sentido pudemos supor a existência de uma aceitação comum, o relato hagiográfico tendo como função a edificação dos fiéis e também, bem como o tipo de santidade que veiculam, sendo um reflexo das relações humanas e de um sistema de valores que se modifica lentamente na Idade Média, em razão do caráter conservador da Igreja e do desejo de retorno às origens, e da força das auctoritates. Realizamos a análise da estrutura da narrativa hagiográfica, bem como a análise lexical e semântica do vocabulário que recobre as emo- ções e as relações afetivas. O vocabulário empregado atribui um sentido e define uma realidade suscetível de nos fazer perceber a formação das relações afetivas e a manifestação das emoções. Os textos das vitae têm uma estrutura interna que acompanha geralmente o progresso espiritual da beata, a efetivação de um programa de santidade. Assim, a narrativa é dividida entre a descrição do homo exterior e do homo interior, ou seja, a aparência externa das beatas, que deve acompanhar o esforço de ascese, de penitência, de jejum que empreendem ao longo de sua existência, e os dons e as graças do Espírito Santo, que lhe conferem o saber e o poder necessários para o seu agir, salvar os viventes e os mortos. Os textos são completados com relatos, exempla, das manifestações de devoção e de conhecimento místico de que são beneficiadas as beatas pela graça do Espírito Santo e, finalmente, ao longo do texto, inúmeros relatos de pequenos milagres e intervenções feitas pelas beatas para seus amigos nos fornecem o material essencial para compreendermos as relações interpessoais na narrativa hagiográ- fica. Buscamos, assim, analisar as formas e os mecanismos das relações afetivas, e que modelos de amizade foram construídos. Nesse sentido, buscamos as construções dos sintagmas, das metáforas (utilizadas pelas beatas e pelos hagiógrafos) e o contexto em que o vocabulário é empregado, para expressar determinados comportamentos e gestos em relação a determinados indivíduos. Demonstramos a construção da santidade durante a infância e a conversio, e analisamos as relações afetivas entre a beata e sua parentela, que agem ou não pela conversão e reconhecem o programa de santidade empreendido. Ainda, iniciamos o que chamamos de análise ad status, ou seja, das ações salvadoras das beatas, através da luta contra os demônios, da exortação à confissão 17 dos pecados, das orações e das lágrimas de acordo com a condição sociorreligiosa dos beneficiados, laicos e eclesiásticos. Mas, ao longo de nossa análise, um elemento fundamental aparece a relação entre conhecimento, intelecção e o amor. Desde Agostinho, sobretudo no De Trinitate, só é possível conhecer Deus através do Amor. A caridade é fundamento da intelecção, daí podermos relacionar Affectus e Intellectus. Assim, se as beatas, intermediárias entre Deus e os homens, garantem o progresso espiritual e a salvação dos amigos, estabelecendo os códigos dessa nova forma de amizade espiritual ou mística, elas o fazem pela infusão do saber pelo Espirito Santo, pela consciência que elas têm de seu programa de santidade, podendo então agir pelos próximos e pelos amigos. Buscamos classificar as fun- ções específicas das beatas no sistema de amizade espiritual e mística: o conhecimento perfeito do coração e do espírito do amigo(a), os milagres e graças obtidos, a eficácia da oração, a revelação dos segredos pela salvação do outro e as consecutivas confissão e benção (que, no entanto, não podem exercer), a direção espiritual, a exortação tendo por objetivo o progresso espiritual do amigo(a) e a possibilidade do apostolado, limitados ao grupo pelo qual elas sentem a amizade e o afeto. E discutimos, sobretudo, a função fundamental da beata, que é a ordenação dos affectus dos amigos, não deixando que as paixões desordenadas levem os amigos ao pecado, à tristeza, à acedia. Através da palavra, da oração, das lágrimas e da alegria, a beata re-forma o amigo que se perde na desordem dos sentimentos; assim, ela age para sua salvação, no sentido em que o faz reencontrar a pax, a tranquilitas, a via para buscar a similitude perdida. Há uma transferência sensível da devoção, dos dons divinos, uma percepção sensível das graças divinas por aquele que é amado. Através da edificação mútua e da dupla eficá- cia da oração, a amizade é vivida em Cristo e é confirmada pelos dons do Espírito Santo. Jacques de Vitry afirma, de forma contundente, a função de conselheira e salvadora de Maria d’Oignies, que amou até o fim aqueles a quem amava, que nunca os abandonou e que, mesmo depois de morta, continuava a interceder por eles. Aqui a santidade é vivida, faz parte do cotidiano, não é apenas o exercício de milagres post-mortem, nos lugares de culto. Por outro lado, os amigos têm suas funções a exercer na relação afetiva: eles garantem sua vida terrestre, 18 por uma solidariedade efetiva nos momentos de perseguição, como é o caso de Juliana de Cornillon, perseguida e exilada pelos escabinos da cidade de Liége; e são os porta-vozes e testemunhas dos seus gestos maravilhosos, dignos de serem lembrados - é o que fazem Jacques de Vitry, Thomas de Cantimpré, os hagiógrafos cistercienses de Villers e o hagiógrafo anônimo da vita Juliana. Ao finalizar esse trabalho acreditamos que ainda resta muito a ser feito, como ir em direção aos teólogos-filósofos da primeira metade de século XIII, como Alberto, o Grande, Boaventura, Giles de Roma, para conhecer sua reflexão sobre o conhecimento de si, sobre a relação entre as formas de intelecção e de afeto, sobre o conceito de pessoa. Aumentar a análise do campo semântico do afeto e das emoções para associá-lo com as conceitos de razão (ratio), vontade (voluntas), natureza (natura), alma (anima), espírito (spiritus), pensamento (mens). Comparar as vitae des beatas com as vitae dos beatos conversos da mesma região e que foram descritos pelos biógrafos de Villers e de Aulne. Fazer um inventário de todos os personagens e todos os gestos para todas as vitae que compõem nosso corpus. Mas, finalmente consideramos que, buscando dar conta de uma piedade moderna, voluntá- ria (o movimento beguinal), mas destinada ao controle eclesiástico (a clausura monástica), os homens da Igreja, que se tornam hagiógrafos, acabam por refletir sobre como essas mulheres simples conhecem os mistérios divinos e sentem perfeitamente a Caridade, vivida plenamente como amor do Cristo e amor ao próximo. Esse comportamento místico maravilhoso permite pesquisar a alma, o intelecto, o amor, a razão, a vontade e, finalmente, a “natureza” dessas mulheres. Pensamos poder dizer que, nessa reflexão sobre os modos de conhecimento e de emoção, os textos hagiográficos, escritos por homens imbuídos da teologia mística cisterciense, mas pertencentes à primeira escolástica, nos fornecem uma verdadeira “antropologia hagiográfica”, uma antropologia da santidade.

 
 
 

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