POESIA HISTÓRICA E/OU REALIDADE LITERÁRIA – WALTHER VON DER VOGELWEIDE E A “ALEMANHA” NOS SÉCULOS XI
- Armando Ensino de Idiomas
- 5 de jul. de 2016
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POESIA HISTÓRICA E/OU REALIDADE LITERÁRIA – WALTHER VON DER VOGELWEIDE E A “ALEMANHA” NOS SÉCULOS XII E XIII: UMA ABORDAGEM CULTURALISTA
Especialmente a partir do século XX observa-se no âmbito das ciências sociais e da linguagem um maior grau de aproximação no que se refere à possibilidade de se depreender e apreender aquilo que convencionamos chamar de real. Como símbolo de uma construção ideal, mas ao mesmo tempo empiricamente passível de datação, o conceito “realidade” permite diversas formas de entendimento como background para a formulação de teorias epistemológicas. Seja qual for, porém, a abordagem interpretativa, qualquer discurso que afirme ou negue o real insere-se dentro de uma visão cultural específica, que norteia o modus faciendi dos discursos científicos específicos. Nossa esfera de atuação prende-se às ciências histórica e literária e em que medida esse processo cultural operacionaliza conjuntamente o fazer literário e o fato histórico. Para tanto, consideramos necessárias algumas palavras sobre cultura. Etimologicamente, cultura deriva-se do verbo latino colere, cuja acepção primordial seria “cultivar”. Portanto, o cultivo de determinada área associa-se metaforicamente ao cuidado com algum campo do saber, que durante gerações frutifica, na medida em que os séculos lhe atribuem insumos de variados tipos, configurando lhe posteriormente um novo plano de existência, refletor de um determinado período e inserido dentro de uma conjuntura social específica. Uma das formas de chegada a esses desdobramentos espaço-temporais é o texto escrito. Tanto a História quanto a Literatura, constituídas enquanto epistéme, trabalham com textos, embora com objetivos diferentes. A uma modelar tentativa de se “documentar” o passado e o presente de uma junta-se o labor essencialmente estético da outra. De forma resumida, poderíamos dizer que ambas vêem na palavra escrita uma fonte de criação e de recriação de um dado momento. Nesse estágio, a cultura e a realidade in dissociam-se. Testemunho e documento apresentam pontos de convergência e divergência em seus procedimentos decodificadores do “real”. O que talvez possa uni-los é a visão de uma “história cultural”, como a proposta por Chartier.
A cultura é um campo, que – de forma semelhante a um texto – possibilita diversas formas de leitura. A própria atenção direciona-se à condensação de significados interpretativos das formas de representação cultural como, do mesmo modo, às estratégias retóricas na representação das culturas. O trabalho inter e transdisciplinar entre os discursos histórico e literário, ao se entrecruzarem, oferecem um campo de visão mais amplo, embora não único, de um determinado ”sujeito cultural”, coletivo ou não, consciente ou não de seu papel como agente transmissor de informações sobre sua geração. Destarte, uma ficcionalização da História não é o nosso objetivo, mas sim a ficção literária historicamente tratada como produto cultural. Ao tratarmos da Baixa Idade Média em regiões do Sacro Império Romano Germânico encontramos alguns elementos culturais, cuja abordagem histórico literária possibilita-nos um viés para a reconstrução daquele passado. Poesia, enquanto realidade literária, como relato histórico sobre os séculos XII e XIII pelos poemas do seu maior Minnesänger, Walther von der Vogelweide. O trovador em questão teria nascido aproximadamente em 1170, possivelmente no Tirol, em território da atual Áustria, apesar de não haver uniformidade quanto a sua cidade natal, vindo a falecer por volta de 1230 em seu feudo localizado nas proximidades da atual Würzburg. O que sabemos de sua vida pode ser inferido, em grande parte, de seus próprios escritos, já que Walther legou à posteridade poemas característicos das três grandes subdivisões do lirismo trovadoresco em alemão. Possivelmente descendendo de família da baixa nobreza, jovem ainda foi levado à Viena, onde foi educado no singen und sagen, i.e., “cantar e dizer”, tendo como seu mestre Reinmar von Hagenau. É a época do hohe minne, do alto amor, estilizado, artificial, onde a mulher inacessível é a senhora dama, herrîn frouwe, e o espaço do jogo amoroso normalmente é o castelo.
O poeta é consciente de seu mister:
Minne ist ein gemeines wort, und doch ungemeine mit den werken: dêst also. minne ist aller tugende ein hort: âne mine wirdet niemer herze rehte frô. sît ich den gelouben hân, frouwe Minne, fröit ouch mir die sinne. mich müet, sol mîn trôst zergân.
O amor cortês é um termo de conhecimento geral, porém poucos conhecem sua essência: isto é certo. O amor cortês é a fonte primeira de todas as virtudes; sem ele nenhum coração se alegra corretamente. Já que nisso creio, senhora Amor, meu coração também se regozija. Dói-me o malogro de minha esperança. O endeusamento literário da figura feminina não é objeto de nosso atual estudo, porém a necessidade da reabilitação da mulher enquanto personagem ocupa um espaço importante dentro do edifício social do baixo medievo. Ou se através da lírica mariana dos séculos X e XI, ou proveniente da literatura em árabe, ou chegando às plagas germanófobas vindo da Provença com os troubadours ou como resquício tardio do trabalho com os textos literários em latim clássico, fato inconteste é o amor cortês – minne – coroando esteticamente um modelo de representação de um ideal social. Walther, por outro lado, conhecedor dos elementos formais do “alto amor”, acrescenta a estes novos topoi, ao colocar em cena uma relação mais pessoal entre o eu-lírico e a figura feminina, tornando-a acessível aos encontros amorosos e permitindo uma sensação de sentimento verídico e recíproco. É a época do niedere minne, o “baixo amor”, não assinalado por uma pretensa qualidade inferior de seus poemas, mas, pelo contrário, uma racional reelaboração estética dos ideais corteses, que para Walther já se afiguram ultrapassados, pois este centra-se agora em um plano mais “real”. O cenário muda da corte para o campo, onde a natureza enlaça os amantes:
Under der linden an der heide, dâ unser zweier bette was, dâ mugt ir vinden schône beide gebrochen bluomen unde gras. vor dem walde in einem tal, tandaradei, schône sanc diu nahtegal. Ich kam gegangen zuo der ouwe: dô wart mîn friedel komen ê. dâ wart ich enpfangen, hêre frouwe, daz ich bin saelic iemer mê. Kuster mich? Wol tûsentstunt: tandaradei, seht wie rôt mir ist der munt. Dô het er gemachet also rîche von bluomen eine bettestat. des wirt noch gelachet inneclîche, kumt iemen an daz selbe pfat. bî den rôsen er wol mac, tandaradei, merken wâ mirz houbet lac. Daz er bî mir laege, wessez iemen (nu enwelle got!), so schamt ich mich. was er mit mir pflaege, niemer niemen bevinde daz, wan er unt ich, und ein kleines vogelîn: tandaradei, daz mac vol getriuwe sîn.
Diante da floresta, em um vale, tandaradei, belamente cantava o rouxinol. Eu fui ao prado: lá já chegara antes meu amigo. Então fui recebida, “Formosa dama”, o que me deixa cada vez mais feliz. Ele me beijou? Umas mil horas: tandaradei, vede como está vermelha minha boca. Lá ele fez um rico leito de flores. Ri-se disso no íntimo, quando alguém passa por aquele atalho. Ele bem pode pelas rosas, tandaradei, perceber onde jazia minha cabeça. Ele estar deitado ao meu lado, se alguém soubesse, (Não queira Deus!), eu me envergonharia. O que ele fez comigo, nunca ninguém descubra isso, só ele e eu, e um pequeno passarinho: tandaradei, que ele possa ser fiel.
O minne persiste, entretanto o liep, “amor sensual”, evidencia-se no contato amoroso, onde a dama toma a palavra e passa à ação, não apenas mais frouwe e herrîn, como também wîp, a mulher fisicamente constituída. Esta segunda fase da produção do bardo germânico, entretanto, ainda corresponde a sua estada na corte dos Babenberger em Viena. Seus Lieder (poemas) denunciam a manutenção das tendências estilísticas do trovadorismo e simultaneamente inovam com o toque pessoal por ir de encontro ao individual numa atitude de abertura ao mundo.
Tal movimento de partida para o outro pode ser melhor vislumbrado após sua partida definitiva de Viena em 1198, quando assume o poder o duque Leopoldo VI. Sobre os motivos da saída de Walther da corte ainda não se acorda, porém as condições sócio-políticas do Império determinariam decisivamente os futuros versos do poeta. Walther passa, então, a procurar serviço em cortes de outros nobres. Procura serviço em terras do margrave Dietrich von Meissen, do bispo Wolfger von Ellenbrechtskirchen, de Ludwig von Thüringen, do conde Dieter Katzenellenbogen e do duque Bernhard von Kärnten. Paralelamente, sua visão política o leva a apoiar nas questões imperiais primeiramente a Felipe da Suábia, depois a Otto IV e finalmente a Frederico II. O serviço a diversos senhores é freqüentemente criticado por estudiosos, mas exatamente seu conceito de Dienst, “serviço” merece esclarecimento. O poeta procura apoiar aqueles soberanos, cujo plano de governo possa trazer uma paz duradoura 61 Conferências para as regiões do Reich, maculado pelo perigo iminente de desintegração política e moral. O autor relata em seus versos uma situação histórica a ele contemporânea. Ele compõe poesias sentenciosas, Spruchdichtungen.
O Sacro Império Romano Germânico - Heilig Römisches Reich Deutscher Nation – foi instituído pelo papa João XII com a sagração de Otto I em 02 de fevereiro de 962. A partir desta data, a casa imperial saxônica da dinastia otoniana coloca em prática a idéia de Carlos Magno em formar um estado universal, com o beneplácito e proteção da Igreja. Deste modo, fundamenta-se uma práxis político-religiosa, que acompanhará os fatos decisivos na história do Império. À época de Walther, a casa dos Staufen conduzia a política imperial, primeiramente nas mãos de Frederico Barba-Ruiva (de 1152 a 1190) e posteriormente Henrique VI (de 1190 a 1197). Ao seu redor agrupavam-se nobres denominados gibelinos, nome proveniente de Waiblingen, castelo e grito de guerra dos Hohenstaufen. As pretensões territoriais de Barba-Ruiva levaram-no até à Itália e conseqüentemente a um choque com a esfera política do papado. Os aliados da Santa Sé defendem do mesmo modo os seus interesses locais, pois são partidários da família dos Welfen, “guelfos”, cujo principal líder era Henrique, o Leão. Por ter se negado a apoiar o imperador Frederico I em sua campanha italiana, foram-lhe confiscados todos os seus feudos à exceção de terras na região de Brunswick.5 Quando do falecimento de Henrique VI em 1197, o Império tornou-se palco da disputa entre as duas facções, com a sua cisão definitiva ocorrendo na eleição do novo imperador. Como pano de fundo europeu aparecem ainda os Dictatus papae, de papa Gregório VII, com seu objetivo de converter toda a cristandade ocidental em simulacro do reino de Deus sob sua direção, ao mesmo tempo em que as cidades italianas sob jurisdição imperial lutavam por sua soberania. Erwin Theodor6 assim esquematiza um quadro das tensões existentes então: Nesta situação é fácil entender por que, após a morte de Henrique VI, cindiram-se os nobres alemães e, enquanto alguns, leais aos gibelinos, procuraram o Duque Filipe da Suábia, o mais novo entre os filhos de Frederico I, oferecendo-lhe a Coroa, preferiram outros o líder guelfo, Duque Otto, segundo filho de Henrique, o Leão ... Walther coloca-se à disposição de Felipe, pois nele vê o continuador da política imperial dos Hohenstaufen, que contrabalançava a influência papal. Seu papel como homem de letras o levava à denúncia social conforme sua Welteinstellung, i.e., sua visão de mundo, da mesma forma que suas necessidades diárias o instavam a uma ação, cuja recompensa poderia ser a volta a uma estabilidade de tempos atrás.
Es gienc eines Tages als unser herre wart geborn von einer maget die er im zemûter hat erkorn ze magdebvrg der kûnig phillipes schone da gieng eins keisers brûder vnd eins keisers kint in einer wat swie doch die namen drige sint er trûc des riches zepter vnd die krone er trat vil lise im was niht gach im sleich ein hoh geborne kûniginne nach rose ane dorn ein tvbe svnder gallen dû zuht was niener anderswa die dûringe vnd die sahsen dienten also da das es den wisen mûste wol gevallen
ó rosa sem espinhos, ó pomba de especial bílis com boas maneiras e cortesia. Os turíngios e os saxões lhe serviram como nunca, de modo a agradar a todos os sábios. O apoio a Felipe e consorte demonstra o pensamento político do bardo nesta primeira fase de suas poesias sentenciosas.
À descrição do casal imperial, com sua indumentária e passos distintos somam-se elementos que o definem como escolhido por Cristo, justificando a mão divina na escolha de Felipe. Aos nobres da Turíngia e da Saxônia coube o respeito e o serviço, Dienst, como deveria suceder a todo sábio membro da nobreza. No entanto, a idéia de um dominum mundi acalentada por Barba-Ruiva praticamente desaparecera nas regiões italianas através dos atos do papa Inocêncio III, que habilmente se tornou tutor do jovem Frederico II, filho de Henrique VI e confirmou Otto como imperador em 1201. O futuro Otto IV, segundo Erwin Theodor,7 havia renunciado perante o papa aos direitos desfrutados pelos reis alemães desde a Concordata de Worms (1122), reconhecendo mesmo a ampliação arbitrária do Estado Papal, praticada por Inocêncio III. A Igreja Imperial, instituída por Otto, o Grande, deixava de ter existência. Posteriormente, no ano de 1204, poderosos príncipes imperiais apoiaram a causa do Staufer, o que permitiu a Felipe recuperar importância política e territorial até sua morte no ano de 1208. Esta não encontrou eco nos versos de Walther, desencantado com as atitudes do imperador assassinado, que, por sua vez, não lhe teria propiciado o desejado feudo para sua estabilidade social. O merecido soldo não chegara em suas mãos:
Philippes kûnig die nahe spehenden zihent dich dvn sist niht dankes milte des bedunket mich wie dv da mitte verliesest michels mere du möhtest gerner dankes geben tvsent pfvnt nne drissec tvsent ane danc dir ist niht kvnt wie man mit gabe erwirbet pris vnd
ere Ó rei Felipe, com muita freqüência ouço de emissários, que tu não gostar de doar – mas isso seria pouco inteligente. Assim muito mais tu perderás, se tu desses trinta mil schillings mesmo por ingratidão a ti seriam dados com prazer muitos milhares mais aprenda, pois, a ganhar com ricas dádivas.
O poeta advertiu ao finado monarca através de suas palavras, juntando sua percepção da realidade da corte com seus próprios anseios. O momento do fim aparente das hostilidades entre guelfos e gibelinos com a volta à unidade e soberania do Império é aguardada por Walther. Este tópico, como assevera Celso Thompson8 caracteriza uma fortíssima preocupação política do poeta que defende: a luta pelo predomínio do poder imperial, Kaisertum, frente ao papado, Papstum, estimulando a fusão dos 63 Conferências conceitos de Reich, Povo e Nação. Isto num universo carente de fronteiras naturais sólidas e oscilando entre uma herança de dispersão e individualismo das antigas tribos germânicas e em contraponto a afirmação de um Império Universal, por mais que a materialização desta última hipótese esbarrasse em obstáculos vários, que limitavam o alcance da idéia imperial aos habitantes da Alemanha, Itália e Borgonha. Assim, a figura de Otto IV aparece como o personificador do antigo ideal político imperial e o poeta saúda o soberano no Concílio de Frankfurt em 1212:
Herre keiser ir sit willekomen des kûniges nam ist û benomen des schinet ûwer krone ob allen kronen üwer hant ist kreftic gûtes vol ir wellent ûbel oder wol so mvget ir beidû rehten vnde losen dar zû sage ich iv mere die fûrsten sint iv vndertan vnd habent mit zûhten ûwer kvnft erbeitet vnd ie der missenere der ist iemer ivwer ane wan von gotte wurde ein engel e verleitet
Senhor imperador, sejais muito bem vindo, o rei já foi tirado de vós e vossa coroa reluz sobre todas as outras. Vós tendes a mão repleta de poder e ouro, que, se quiserdes o bem ou o mal, podeis facilmente castigar e ricamente recompensar. Agora, pois, dir-vos-ei a nova: os príncipes são vossos vassalos e vos esperam respeitosamente. Especialmente o Meissner, que sempre foi vosso, com certeza: antes um anjo enganaria a Deus.
A mesura do cumprimento e arma da ironia dão o tom ao Spruch: Walther recepciona o imperador como arauto-poeta, enumerando seu poder como senhor absoluto. Não obstante o elogio, informa a Otto IV sobre a posição dúbia de diversos nobres, dentre eles o margrave Dietrich von Meissen, que durante a ausência do imperador, teria arquitetado uma revolta. O poeta torna-se arauto, atento às notícias e protegendo seu senhor. Convergem aqui o texto e a informação de cunho histórico, ambos microcosmos do início do século XIII. Mesmo assim, a sustentação política do imperador corria sérios riscos. Já entre 1209 e 1211, Otto IV rompera sua aliança com o papado, tencionando incorporar sob seu cetro as regiões sob influência e domínio papal na Itália. Investe também contra o reino da Sicília, a pedido dos inimigos do rei Frederico II. Inocêncio III intervém e o excomunga. Visto como novo inimigo a tentar desestabilizar a governabilidade do Reich, o papa torna-se alvo das sentenças de Walther von der Vogelweide.
A constante intromissão do Estado Pontifício com ambições teocráticas nos negócios do Império é criticada pelo vate, que, ao mesmo tempo, assinala o fluxo de divisas para os cofres de Latrão:
Sagent an her stoc hat ûch der babest har gesendet das er in richet vnd vns tûtschen ermet vnde swendet swenne im dû volle masse kvmt ze latran 64 Atas da IV Semana de Estudos Medievais so tût er einen argen lift als er e hat getan er seit vns danne wie das riche ste verwarren vnz in erfûllent aber alle pfarren ich wenne des silbers wening kvmet zehelfe in gottes lant grossen hort zerteilet selten pfaffen hant her stoc ir sit vf schaden har gesant das ir vs tûtschen lûten sûchent törinnen vnde narren
Diga, senhor cepo,9 o papa vos mandou aqui para que vós o torneis rico, a nós, alemães, pobres e penhorados. Quando toda essa quantia afluir para Latrão, ele fará uma malandragem como já fez antes. Ele diz, por causa da miséria dos ricos devemos encher todas as caixas das paróquias. Eu temo, que deste ouro pouco irá para a terra de Deus, pois um padre não dá dinheiro de sua mão. Senhor cepo, enviado em nosso detrimento, de modo que os tolos e insensatos alemães aplaquem vossa cobiça.
Os testemunhos dos Carmina Burana, poemas dos séculos XII e XIII, comprovam um pensamento contrário à Cúria em terras do Sacro Império. A voz de Walther associa-se às canções dos goliardos e juntas quase que documentam a gestão eclesiástica dos rendimentos provenientes das esmolas e doações. Visualiza-se nesta poesia sentenciosa o sentimento nacional do poeta ao se intitular um tûtschen, “alemão”. Porém o domingo de Bouvines (27 de julho de 1214) colocaria um termo às pretensões de Otto IV. Derrotado no campo de batalha, perde a autoridade moral e política para gerir o Império e seu irmão, o conde Henrique, dá a Frederico II as insígnias imperiais. Walther conhece o quinto mandatário do Império. Frederico II, gibelino, da casa dos Staufen é uma das figuras históricas mais importantes da primeira metade do século XIII, reinando entre 1215 e 125010 . Seu comportamento leva-no à comparação com um estadista moderno, segundo Erwin Theodor11 : Todo o seu posicionamento intelectual, sua tolerância religiosa, seu ceticismo perante tradições superadas, seu reconhecimento do primado da razão, sua capacidade de entender a propaganda como meio de realizar políticas eficientes, transformaram-no na memória dos povos num soberano quase moderno. Este imperador, bom conhecedor de latim, grego e árabe, representa o último monarca alemão, que integra a Itália ao Império. A princípio, as rela- ções entre o jovem Frederico II e o poeta não foram benéficas para este último, razão que o conduziu a oferecer seus serviços a outros nobres até o ano de 1220, quando finalmente foi recompensado pelos seus préstimos. Walther exclama exultante:
Ich han min lehen al die werlt ich han min leen nv enfûhrte ich niht den hornvng an die zehen vnd wil alle bôse heren dester minre vlehen der edel kûnic der milte kûnic hat mich beraten das ich den svmer luft vnd in dem winter hitze han minen nahgeburen dvnke ich verre bas getan 65 Conferências si sehent mich niht mer an in bvtzen wis als si wilent taten ich bin ze lange arn gewesen ane minen danc ich was so volle scheltens das min aten stanc das hat der kûnic gemachet reine vnd dar zû minen sanc
Ó mundo, eu tenho meu feudo, eu tenho meu feudo.
Nunca mais temerei o frio em meus dedos dos pés, muito menos ter que implorar algo aos maus senhores. O nobre e bondoso rei deu a mim sustento, de forma que eu posso ter a brisa no verão e o calor no inverno. Os vizinhos me olham com outros olhos e não observam mais em mim como sempre um rosto amedrontado. Por muito tempo fui pobre, sem um agradecimento, e estava cheio de ira, de tal forma que minha respiração fedia. O rei a purificou e por isso meu canto.
Seriam então as Spruchdichtungen cantos absolutamente direcionados ao seu próprio bem estar? Acreditamos que não somente, como também refletem o desabafo de um homem, que colocou seu talento a serviço de imperadores, reis e nobres. Walther von der Vogelweide é um sujeito consciente de seu tempo, coaduna-se com a política de seus soberanos e usa a poesia como instrumento de propaganda imperial, ao mesmo tempo em que luta pelos seus interesses. Como Minnesänger, reconhece na palavra escrita – cantada – o papel de divulgadora de idéias e de coformadora de opiniões. Ao longo de seus quase sessenta (?) anos de vida, o poeta, como um vate, inspirado talvez pelas valquírias germânicas, cantou o amor cortes, celebrou o encontro amoroso dos casais e engajouse em questões palpitantes de seu tempo. Ele viveu e utilizou seus textos como forma de participação social. Poesia histórica e/ou realidade literária? A Literatura não é, nem deve ser um espelho da realidade histórica. Do mesmo modo, o documento histórico significa um modelo de percepção e entendimento de uma dada realidade. Ambos os caminhos podem ser englobados lato sensu naquilo que entendemos como cultura, i.e., o complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade. 12 Os Lieder de Walther von der Vogelweide, e em especial as poesias sentenciosas, prestam-se muito bem a essa recomposição factual a partir de uma perspectiva histórica. Se, para a análise do testemunho histórico, como afirmam Pereira & Chaloub13 deve-se sempre ter em vista que os sujeitos vivem a história como indeterminação, como incerteza, como necessidade cotidiana de intervir para tornar real o devir que lhes interessa, os textos do Minnesänger fornecem elementos histórico-literários, que ao reduzir a escala de observação (Sacro Império - séculos XII-XIII), proporcionam ao estudioso da Idade Média uma visão privilegiada de suas tensões internas e externas através da arte da palavra.

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