século IV e a Administração imperial
- Armando Ensino de Idiomas
- 6 de jul. de 2016
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O fato de o baixo império ser sobretudo um Estado burocrático é universalmente admitido; por "burocrático" entende-se que foi um governo organizado por departamentos (Officia) com esferas precisas de atividade, servido por funcionários assalariados, cuja promoção estava determinada por regras de antiguidade e prioridade; esses funcionários tinham um senso de lealdade em relação a seus departamentos, e nos níveis da administração regular houve um elevado grau de continuidade no serviço, embora ocorressem transtornos políticos nos escalões mais altos. Foi uma burocracia também no sentido mais corrente de um governo caracterizado pelas massas de papeis. Um documento de singular importância da a impressão de que a organização do governo poderia ser apreciada como uma obra de arte em si mesma; esse tributo à própria consciência burocrática é a Notitia Dignitatum, uma compilação com ilustrações de seus emblemas, dos departamentos administrativos e das patentes militares tal como eram no final do século IV e principio do V.
A Notitia Dignitatum da uma visão apenas parcial da escala completa das operações do final do governo romano, entre cujos agentes não é preciso catalogar somente os que exerciam cargos na corte imperial, mas também em todas as províncias: superintendentes das tesourarias provinciais, contadores encarregados do abastecimento dos exércitos regionais, supervisores das fabricas de armas e moedas, funcionários em missão de serviço para arrecadar impostos, administradores das propriedades imperiais, etc. Alguns destes funcionários, embora nem todas, deveriam estar inscritos em outro documento, o Laterculum minus (registro de "dignitários subalternos") que aparece mencionado na Notitia Dignitatum, embora não tenha sido conservado.
Para os historiadores modernos, como sem duvida para os observadores da Roma tardia, o mais evidente dos métodos daquele governo tão elegantemente ilustrado na Notitia foi a violência com que tentou impor sua vontade. O código teodosiano, uma compilação legislativa do século IV e princípios do V, escrito entre os anos 429 e 437 e que abrangeu todas as áreas concebíveis da prática legislativa e administrativa, proporciona uma extensão espantosa de castigos. Em duas leis de Constantino, os funcionários do Estado que aceitavam subornos tinham as mãos cortadas, e os cúmplices no seqüestro de mulheres solteiras, tinham a boca e a garganta soldadas com chumbo derretido; um excesso de ímpeto retórico que não deixa de ter paralelos no código e em outras fontes. A tortura foi aplicada com regularidade não em sua função "própria", de extrair informação verdadeira num julgamento, mas como um aprimoramento antes da execução e como um castigo em si mesmo. O uso desses e de outros castigos é confirmado por numerosas referências literárias é especialmente por Amiano Marcelino, que nos aproxima como nenhuma outra fonte da atmosfera de terror com que os imperadores do baixo império defendiam seus direitos, especialmente quando temiam que sua posição estivesse ameaça pela traição e suas artes, como a magia e a leitura do futuro através dos horóscopos.
O tom moral da legislação romana tardia viu-se muito pouco afetado pela cristianização do império. A influência do cristianismo pode ser vista claramente em casos individuais. Diz-se que Constantino aboliu a pena de crucificação e o desmembramento das pernas e uma de suas leis proibia queimar o rosto "para que a imagem da beleza divina não fosse desfigurada". Em diversos períodos do século IV foram emitidas disposições referentes a obediência dos domingos e algumas vezes foram oferecidas anistias aos criminosos pela Páscoa, embora certas categorias de delinqüentes ficassem sempre de fora. É possível, embora esteja longe de ser seguro, que o paulatino endurecimento da legislação sobre o adultério, a maior severidade sobre o divórcio e as ofensas mais graves à moral, como a prostituição masculina e a imoralidade das atrizes, foram inspirados pelo cristianismo. Em geral é impossível afirmar que a legislação romana tardia fosse mais humana que a anterior; o certo é que no tratamento das divergências religiosas tornou-se cada vez mais intolerante.
Os propósitos políticos e social da legislação romana tardia estavam muito claros no pensamento dos imperadores: a manutenção de sua própria posição e da ordem publica é a organização da sociedade como melhor conviesse às necessidades do governo. Ao final, a sociedade romana tardia organizou-se como um conjunto de instrumentos e recursos econômicos, cada um com uma função definida em relação às necessidades do governo.
A legislação imperial do século IV causa a impressão de que aquela sociedade romana estava mais rígida e firmemente atrelada por obrigações hereditárias do que antes. Cabe a possibilidade, não entanto, de que a nova imagem da sociedade romana do final do império, tal como aparece nas leis, seja um reflexo não tanto das mudanças da própria sociedade quanto das necessidades do governo. Não resta duvida de que a incidência do tardio governo romano, se medimos isso pela legislação e pelo numero de funcionários, foi muito maior que nos primeiros tempos e sua influência mais direta. Talvez fosse preciso ver que isso como conseqüência do reconhecimento por parte das autoridades do baixo império, de que tinham mais demandas a atender e mais objetivos a alcançar e que tentaram cumpri-lo simplesmente governando mais.
Os historiadores recentes destacam dois fatores essenciais: o grau de mobilidade social ainda inerente à sociedade romana tardia e, por outro lado, o conservadorismo da sociedade antiga em geral. Como em muitas outras épocas e lugares, os filhos tendiam a seguir os ofícios dos pais; padeiros, soldados, comerciantes e armadores navais gozavam de certas vantagens na vida, de uma profissão definida e de um papel reconhecido na sociedade. Não parece claro que os atrativos de tais profissões pudessem ser aprimorados. O que de fato é claro em qualquer sociedade é que as comunidades camponesas são indiferentes ou resistentes às mudanças; mantêm os antigos modos de vida e as velhas crenças (não é por acaso que a palavra paganus, usada pelos polemistas cristãos para distinguir um adorador dos deuses antigos, designe o "aldeão" ou "camponês").
No entanto, é possível reunir numerosos casos individuais de mobilidade social de sujeitos marginalizados ou desqualificados pela legislação, "casos de sucesso" de indivíduos que escaparam dos ofícios hereditários: um padeiro que se torna governador de província, o filho de um edil que chega a professor de retórica (e depois a bispo), o soldado que se torna monge e assim por diante. O problema, como sempre, é de estatística. Os exemplos provocam certa impressão de que e impossível medir com algum método cientifico. Mas esta impressão é um tanto valida, especialmente quando é confirmada pelo exame de um tópico que resiste a uma discussão mais analítica: o papel da corte imperial, ironicamente, se levamos em conta seus objetivos sociais, como fontes de mobilidade social e de oportunidades de evasão.
O comitatus aparece nas fontes tardias romanas numa extensa variedade de formas: como o centro de governo, o cenário das mais serias discussões em momentos de crise, litígios, petições de embaixadas, disputa política e mortes imprevistas: mas também como uma espécie de "clube" de intelectuais que atraía os homens de talento, os ambiciosos e os mais educados, favorecendo passatempos literários e proporcionando o ambiente para festas elegantes, assim como para serias discussões de assuntos religiosos e filosóficos, caso da sociedade cortesã de Milão, segundo as Confissões de Santo Agostinho. São facetas de suas atividades que podem ser facilmente confirmadas pelas fontes antigas.
A corte também funcionava como um estimulo econômico nas regiões em que estava assentada. A presença da corte imperial em Trieris deu oportunidade para uma multidão de aspirantes das cidades do centro e do sudoeste da Gália, que no início do império participavam em pequena medida da vida publica de Roma. O mesmo vale dizer da corte de Constantinopla ou dos distritos interiores da Anatólia em que os bispos da Capadócia, Gregório Nacianceno, Basilio de Cesareia e Gregório de Nicéia foram a expressão da "ascensão" cultural e política de uma parte antes inativa dentro do Império Romano oriental.
O papel da corte fica demonstrado através da coleção de cartas de algumas figuras proeminentes da vida publica que estiveram relacionadas com ela: no Ocidente o orador Simaco e no Oriente o retórico Libanio de Antioquia e os bispos da Capadócia. Destas fontes pode-se concluir que, além de seu papel como funcionários imperiais, muitas dos correspondentes na corte daqueles influentes protetores obtiveram também outros benefícios, privilégios e prerrogativas para eles e seus aliados. Apesar do que possa se depreender do código teodosiano sobre a existência de uma sociedade de castas rigidamente definida pela legislação imperial, outras fontes freqüentemente a fragmentam numa serie de continuas batalhas entre os imperadores e os objetivos que sua legislação persegue, esta ultima utilizada com demasiada freqüência pelos próprios agentes imperiais para defenderem a si mesmos e manter seus privilégios.
Seria errôneo descrever isto simplesmente como "corrupção", embora os imperadores estivessem perfeitamente interados da implicação dos funcionários imperiais em interesses privados e tentassem prevenir isso (com mais legislação); esta era, simplesmente, a forma como funcionava o governo em sul contexto social. O baixo império vinha a ser uma sociedade pluralista com uma multiplicidade de interesses criados que afetavam o governo tão eficazmente quanto sua influencia permitia. Dois dos interesses criados mais bem organizados são dignos de menção.
A Igreja, junto com a burocracia, foi vista por alguns críticos modernos como uma das causas principais do enfraquecimento do baixo império, por quanto atraiu para seu serviço a homens que de outra maneira poderiam ter sido uteis ao Estado. Mas os bispos, assim como os retóricos, encontravam-se entre as grandes personalidades do final do império. Não é garantido que houvessem brilhado no serviço imperial como o fizeram na Igreja nem que o serviço imperial tivesse ganhado significativamente com seu apoio como burocratas e funcionários. Se Ambrósio tivesse se tornado prefeito como seu pai, poderia haver desempenhado esse cargo com o brio que sua cátedra de bispo ihe permitiu?
O segundo dos grandes interesses criados foi o Senado romano, que através de uma instituição sem grande poder político, mas com imenso prestigio histórico, representava os interesses da nobreza territorial da Itália e das províncias ocidentais. (O Senado de Constantinopla, recrutado entre as famílias latifundiárias do leste, esteve sempre misturado com a corte imperial do Oriente e nunca teve a independência corporativa de seu equivalente romano.) Sob a orientação do prefeito de Roma e do princeps senatus, o primeiro senador em jurisdição e prestigio, o Senado governou Roma e grande parte do centro e do sul da Itália como domínios próprios. Os senadores tinham grandes propriedades rurais na Itália, na Sicilia e no norte da África, fortalecendo sua influência nessas áreas por meio dos governadores e dos vínculos hereditários de clientelismo. Através de sua influencia econômica, seu prestigio e sua organização política baseada no Senado, a aristocracia romana conseguiu exercer uma enorme e constante pressão sobre os imperadores.
A imensa riqueza da nobreza senatorial de Roma não pode ser superestimada; foi ostentosamente consumida em construções luxuosas, em viagens com todo o conforto, com vestes elegantes, na manutenção de grandes criadagens com um verdadeiro "exercito" de escravos e com doações generosas aos colegas e ao povo de Roma, especialmente para o financiamento de jogos públicos. As receitas de algumas famílias senatoriais, pelas rendas de suas propriedades rurais, flutuavam, segundo uma fonte da época, entre 4.000 e 1.500 libras de ouro, no caso dos senadores com um patrimônio "moderado", mais outro terço que poderiam obter com a venda dos excedentes. O gasto dos senadores nos jogos públicos também foi considerável. O orador Simaco, um senador de riqueza "moderada", investiu 2.000 libras de ouro nos jogos para celebrar a promoção de seu filho a pretório no ano 401.

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